Se a vigilância é o novo normal, deveríamos ter o controle dos nossos dados

Homem com o rosto parcialmente iluminado mexendo no celular no escuro.

No fim da década de 1980, o Partido Democrata dos Estados Unidos já tinha decidido quem seria seu candidato à Casa Branca para a eleição de 1988. Tudo indicava que, após oito anos de governo do republicano Ronald Reagan, era hora dos democratas voltarem à presidência. Não era só o momento que era favorável. Vencedor das primárias do partido, o senador Gary Hart personificava a figura perfeita. Se um marqueteiro lapidasse um candidato ideal, ele seria Hart, a começar pelo visual: com 51 anos, sorriso fácil e um cabelo raro para a idade, Hart era aquele jovem senhor que desfila charme por aí. Alguns democratas viam nele uma nova encarnação da mística de John Kennedy, presidente assassinado 25 anos antes.

Ainda que não seja fissurado em história política norte-americana, você já deve ter se ligado que o potencial todo do Hart não se cumpriu. Se tivesse, você provavelmente já teria ouvido falar nele, mesmo sem saber direito onde situá-lo na história ou indicar seus feitos. É provável que você saiba quem é Lyndon Johnson, Dwight Eisenhower, Nilo Peçanha e José Sarney ainda que não saiba exatamente o que cada um deles fez de importante. Natural, não precisa se culpar. Cada um tem seu próprio barato. O ponto é que, como Hart não ocupou a Casa Branca, você nunca nem ouviu falar nele. Hart não chegou a figurar na cédula das eleições de 1988. O potencial do neo-Kennedy ruiu por um caso amoroso.

Em uma noite de 1987, o telefone da mesa de um jornalista do Miami Herald tocou. Uma voz anônima garantia que sua melhor amiga estava tendo um caso com Hart, então casado há décadas. Intrigado, o repórter seguiu a menina e a viu entrar no apartamento de Hart. O jornalista, junto a um fotógrafo, acampou em frente à residência e, no dia seguinte, perguntou ao senador quem era aquela mulher. Hart não respondeu. Para ele, era claro que, ainda que um enorme escrutínio público fizesse parte da campanha eleitoral, não era sua obrigação responder às dúvidas da imprensa sobre sua vida privada. O Miami Herald publicou a reportagem e a bomba estourou.

Até então, Hart estava coberto de razão. A imprensa norte-americana nunca tinha se interessado em cobrir a vida afetiva e/ou sexual dos políticos. Até quem não conhece política sabe que o próprio Kennedy teve um caso com Marilyn Monroe — não à toa, a história do “happy birthday, Mr. President” e a loira esvoaçante saindo de um bolo se cimentou na memória coletiva de tantos filmes, séries e livros que recriaram a cena. Mas um evento, ocorrido uma década antes, mudou as regras do jogo: um grupo de sujeitos arrombou um comitê do Partido Democrata para instalar escutas clandestinas e acabou preso pela polícia. Dois jornalistas do Washington Post, guiados por uma fonte anônima conhecida como Garganta Profunda, descobriram que o grupo tinha conexão direta com o então presidente, o republicano Richard Nixon.

O caso, chamado de Watergate1, não só tirou Nixon do cargo como também revelou uma mídia condescendente com um sujeito que demonstrava uma instabilidade emocional anormal, segundo o livro All the truth is out: The week politics went tabloid (sem edição em português), escrito pelo jornalista Matt Bai. Aliás, essa história toda está muito bem contada (para variar) num episódio do Radiolab chamado “I don’t have to answer that”. Em meio à explosão de podcasts dos últimos anos, o Radiolab é aquele moletom velho para o qual você sempre volta quando precisa de conforto.

Voltando. A partir do Watergate, a imprensa se viu obrigada a procurar qualquer tipo de comportamento, mesmo na vida pessoal, que demonstrasse a incapacidade do postulante a ocupar a Casa Branca. (Isso valeu por décadas até chegarmos a Donald Trump, mas essa é história para outro dia…) Foi baseado nesse contexto que Hart achou que não precisava discutir o assunto. Ele estava errado. Uma semana depois da reportagem do Miami Herald, o senador retirou sua candidatura. Meses depois ele tentou retomá-la, mas a estocada tinha sido fatal. No ano seguinte, o republicano George Bush venceu o democrata Michael Dukakis. Hart entrou para a história não como esperava, como o 43º presidente dos Estados Unidos, mas como o sujeito que deixou para trás boas chances de virar o homem mais poderoso do mundo por não saber ler a mudança do vento2. Para Hart, a definição de privacidade que valia em 1987 ainda era a mesma das cinco décadas anteriores. Não era.

Gary Hart discursando na tribuna e mulheres sentadas atrás dele.
Gary Hart discursa para um grupo de mulheres nas prévias de 1984, em São Francisco, Califórnia. Foto: Nancy Wong.

A gente pode olhar hoje, numa época em que atividades pessoais são exploradas à exaustão por políticos para atrair votos, e achar que Heart foi tonto de não ter visto essa mudança vindo forte como um touro. A real é que é muito fácil fazer esse julgamento em retrospectiva. Quando a mudança está acontecendo, entender e, principalmente, agir é mais difícil. Estar no olho do furacão torna tudo imensamente mais difícil. E, hoje, a gente não está muito diferente dele no fim da década de 1980. Podemos achar que as coisas estão bem esclarecidas, mas a real é que somos todos Gary Harts tentando negar uma realidade explícita.

O que é privacidade? Por que ela é importante na sua vida? O que é que estamos dando para as maiores empresas do mundo em troca de “anúncios relevantes” (note as aspas)? Ela vale tão pouco assim para abrirmos mão a troco de mixaria? Da mesma forma como fizemos no episódio anterior sobre monopólios, este Tecnocracia vai explorar alguns conceitos básicos de privacidade para a gente poder entender o que o modelo de negócio das grandes empresas de internet explora. Ao mesmo tempo em que é delicado, privacidade é um assunto quente. Se vamos discutir o que podem ou não podem fazer, é melhor a gente saber, antes, que diabo é privacidade.

O conceito de privacidade é antigo, ainda que não praticado. Nas obras de filósofos gregos, como Sócrates, já existiam discussões sobre a distinção entre nossa persona no ambiente público e nossa persona no ambiente privado. “Ainda que a vida privada fosse vista de vez em quando como um comportamento antissocial, períodos de recolhimento normalmente eram aceitos. Sempre existiu um tipo de conflito entre ‘o desejo subjetivo de solidão e isolamento e a necessidade objetiva de depender dos outros'”, segundo o pesquisador holandês Jan Holvast, que durante 40 anos estudou liberdades pessoais na Universidade de Amsterdã e escreveu sobre a história da privacidade para o livro The history of information security: A comprehensive handbook. (O livro não tem edição no Brasil, mas você pode ler o capítulo do Holvast de graça no site da editora.)

Ainda que existisse esse desejo, ele demorou muito a se expressar completamente. A noção de privacidade mudou profundamente nos últimos milhares de anos porque a organização social mudou profundamente nos últimos milhares de anos. A privacidade só existe quando se considera que cada ser humano é único e tem direito a um espaço único onde ninguém tem acesso ou só tem ação quando a pessoa permite. Em sociedades tribais, a noção de indivíduo era bem menos importante que a noção de grupo, também por uma questão de segurança: num ambiente ainda inóspito, com armas rudimentares e uma taxa mortalidade que te colocava na terceira idade com 35 anos, era mais seguro viver em grupo, como uma entidade única. Crianças, por exemplo, eram criadas pelo grupo e não no sentido do “it takes a village to raise a child”, o provérbio africano que o Valter Hugo Mãe explora lindamente num livro chamado O filho de mil homens. Era criação literal, todo mundo alimentando, cuidando da segurança, das doenças e afins.

A noção de privacidade atual foi cunhada no fim do século XIX quando dois juristas norte-americanos, Samuel Warren e Louis Brandeis, escreveram um paper chamado The right to privacy (“O direito à privacidade” em tradução livre), que influenciou profundamente a redação de leis sobre privacidade nas décadas seguintes. O texto é influente por ter sido o primeiro a defender o direito do cidadão em ser deixado em paz. Nos termos deles, privacidade é “o direito de ser deixado sozinho” (tradução livre para “the right to be let alone”). É uma definição razoavelmente datada, já que vamos ver mais adiante que o capitalismo de vigilância nos deixa super em paz, numa tranquila, numa relax, numa boa, enquanto coleta até o ritmo de formação de cera nos nossos ouvidos.

Nos últimos anos, houve um desfile de tentativas de definir o que é privacidade numa época de vigilância continuada. Todas esbarram, com algumas variações, em uma linha central: privacidade é a capacidade de divulgar ou retirar o acesso a informações suas quando e para quem quiser. Dar acesso uma vez aos seus dados não significa dar acesso eterno. Funciona como relações humanas — todo mundo que já teve um namoro sabe disso. Tem coisas que vocês fizeram num momento que não fazem mais. Trata-se de um acordo temporal. Essa definição é importante porque é exatamente o que não acontece hoje em tecnologia.

Tecnologia – privacidade = vigilância

Chegou aquela hora em que você reclama que deu play num podcast sobre tecnologia e só ouviu até agora sobre eleição, Hugh Jackman, tribos que transam na frente dos filhos e aquele Sócrates que não deixava o atacante na cara do gol. Calma, bonitinho, chegamos no ponto da amarração. A discussão sobre privacidade está intrinsecamente conectada ao desenvolvimento de tecnologia, tanto como forma de arrombar a porta como para se proteger dos abusos de invasão de privacidade.

O casamento entre tecnologia e privacidade existe por outra razão: a vigilância. As discussões sobre privacidade só existem porque novas tecnologias permitem que governos e empresas vigiem eu e você com uma melhor extração de dados e em ambientes que, há décadas, eram impossíveis. Há uma clara relação de causa–consequência aqui: as discussões sobre como uma nova tecnologia está permitindo a devassa da privacidade alheia acontecem sempre quando a devassa já está acontecendo. Nunca é algo teórico. Ou como a jornalista Jill Lepore resume bem na revista The New Yorker:

Baseada na análise histórica, a relação entre sigilo e privacidade pode ser resumida em um axioma: a defesa da privacidade segue, e nunca antecede, a emergência de novas tecnologias para a exposição de segredos. Em outras palavras, a defesa por privacidade sempre vem tarde demais. O cavalo já está fora do estábulo. Os correios já abriram sua carta. Sua fotografia está no Facebook. O Google já sabe que, a despeito do seu perfil demográfico, que você odeia couve.

Fosse portuguesa, Lepore resumiria com um “agora Inês é morta”.

Quando a gente grita, já é tarde. O nível de decibéis na discussão atual sobre privacidade é um indício também de quão rotineira e permissiva se tornou a vigilância. “Mesmo com a tecnologia desenvolvida no século XIX, não foi até o século XX que o frágil equilíbrio entre privacidade e vigilância foi ameaçado. Inúmeras inovações na sofisticação e miniaturização das ferramentas de vigilância, particularmente após a II Guerra Mundial, concomitantes com tendências políticas, sociais e culturais, levaram à aceitação da vigilância física generalizada não só por governos, mas também por cidadãos privados”, escreve Lawrence Cappello, pesquisador da Universidade de Chicago e autor do livro None of your damn business: Privacy in the United States from the Gilded Age to the Digital Age, publicado em dezembro.

Quem acompanha o mercado de tecnologia já ouviu a expressão “capitalismo de vigilância”. Outra pesquisadora, Shoshana Zuboff de Harvard, escreveu um livro bastante elogiado sobre o assunto (ainda está na lista de leituras para 2020, espere um Tecnocracia adiante sobre). Há de se ter cuidado aqui com uma distinção. A miniaturização e proliferação de tecnologias que o Cappello explicita não pariu a vigilância, apenas a facilitou. No mais, exterminar qualquer vigilância da sociedade é uma utopia:

A palavra vigilância (ou “surveillance” em inglês) é binária na sua natureza e vem do francês para fiscalizar, ficar de olho. No sentido de olhar um ou muitos indivíduos para mantê-los seguros, mas também ficar de olho para garantir um certo padrão de comportamento. Conceitualmente, vigilância tanto permite como limita e é usada tanto para proteger como para controlar. (…) Toda sociedade que estabeleceu leis também estabeleceu mecanismos para executar essas leis. Vigilância, nesse sentido, é uma ferramenta necessária — parte no nosso maquinário comum que despreza a privacidade de indivíduos e grupos para proteger os direitos de outros indivíduos e grupos. Qualquer conversa sobre vigilância precisa reconhecer essa realidade. Pais vigiam seus filhos. Policiais vigiam espaços públicos. Chefes vigiam funcionários.

Em outras palavras: a vigilância acontece em duas esferas. A primeira é a pública. Nunca existiu privacidade sob nenhum governo. Os governos são os “ultimate data brokers”, a instituição para quem você deve dar seus dados sobre renda, patrimônio, saúde e o escambau. Por isso é tão grave quando é o governo quem vaza seus dados. Não foi a internet quem criou essa capacidade de o governo espionar.

Em 1844, o revolucionário italiano Giuseppe Mazzini, exilado em Londres, tinha suspeitas de que o governo britânico estava abrindo suas cartas. Para tirar a dúvida, ele resolveu mandar para si mesmo uma carta com sementes, fios de cabelo e grãos de areia. Selou a carta com cera, colocou no correio e esperou. Dias depois, a mesma carta chegou, selada com cera. Ele abriu e não encontrou nenhum dos detritos lá, uma estratégia que várias obras de ficção passadas em governos autoritários já utilizaram, como George Smiley, o protagonista do livro O espião que sabia demais, do John Le Carré ou o Winston Smith, protagonista do 1984, do George Orwell.

Mazzini reclamou com o governo, mas a Justiça afirmou que não poderia fazer nada já que a ação que ele alegava fazia parte de um programa secreto de estado. Séculos depois, sabe-se que não apenas o governo estava abrindo as cartas de Mazzini, mas o fazia dentro de uma divisão chamada Secret Department of the Post Office. Centenas de cartas haviam sido aberta e séculos antes do próprio Mazzini. Segundo Holvast, desde pelo menos o século XIV cidadãos recorrem à Justiça na Europa para tentar barrar o governo de bisbilhotar suas vidas. O conceito de privacidade total frente ao governo sempre se equilibrou entre um silêncio retumbante enquanto a máquina de vigilância roda e as discussões acaloradas quando algum fato novo joga luz sobre a máquina — de Mazzini para as cartas em 1844 a Edward Snowden para todas as comunicações digitais em 2013.

A resposta do governo, seja no século XIX ou no XXI, sempre se baseou na mesma premissa: ao avançar sobre a privacidade de todos, temos condições de antever ataques e prevenir milhões de mortes. É uma premissa questionável, tanto lá fora como aqui. Seis semanas do 11 de setembro, o Congresso norte-americano aprovou e o então presidente George W. Bush sancionou uma lei chamada Patriot Act que afrouxava as restrições à coleta e ao armazenamento de comunicações eletrônicas. O Patriot Act foi a base teórica na qual foi possível criar os programas da NSA que acessam informações diretamente dos servidores das Big Tech, por exemplo. A partir daí, a coleta ganha o financiamento e a escala global que tem até hoje. Ainda com tal poder, houve ataques terroristas em solo norte-americano que a maior máquina de espionagem da história, a NSA, foi incapaz de antever e prevenir. Mas essa é uma discussão para outro momento.

O que eu estou argumentando é que não existe uma resposta clara, preto no branco, nessa troca entre privacidade e segurança. Todo mundo quer viver num mundo em que ataques violentos baseados em visões extremistas são combatidos com eficiência pelo Estado, mas imagino que exista no público em geral uma desconfiança pela coleta desmedida, um reconhecimento de que coletar sem saber o que se vai fazer com aquilo nos abre a possíveis riscos de mau uso dos dados. Será que tem? Eu sempre tenho dúvidas quanto a isso.

Uma festa onde você está mesmo se não quiser

A grande questão do abuso de privacidade atual está na segunda esfera: a privada. Em nenhum outro momento da história a iniciativa privada deteve tantas informações a seu respeito sem qualquer tipo de regulamentação e, principalmente, com um controle quase inexistente da sua parte. Você pode achar que a gente está falando só dos suspeitos usuais — Facebook, Google e afins —, mas o capitalismo de vigilância é poderoso porque milhares de empresas, algumas cujo modelo de negócio não tem relação direta com dados, exploram, sem nenhum alarde, sua privacidade com o intuito de lucrar.

Vamos fazer um exercício prático aqui: pense agora em quantos desses serviços online você está. Se você não está em nenhum e já está se achando blindado, eu tenho péssimas notícias. Primeiro porque Amazon, Google e Microsoft não são só empresas com grandes negócios de internet — elas se confundem com a infra-estrutura da internet, como já falamos em outro Tecnocracia. Pare de usar a Amazon e dezenas de outros serviços não rodam, a começar pela Netflix.

Tá bom, você vai me dizer que não tem conta no Facebook e, logo, eles não podem usar seus dados. Pense de novo: em janeiro, a empresa lançou uma ferramenta chamada Atividade Fora do Facebook que mostra quais serviços enviaram informações de você ao Facebook. No meu, os três apps que mais pingaram o Facebook foram a rede social de leitura Goodreads (que é da Amazon), o aplicativo da NBA e o Strava, um app para registrar minhas pedaladas. “Claro, Guilherme, você usou seu login do Facebook para entrar”. Não, bonitinho. O único com login do Facebook foi o da NBA. Aqui vale o pensamento anterior: tantos serviços dependem das ferramentas de marketing do Facebook que, mesmo que você jamais tenha colocado os pés na rede social, eles têm um perfil seu e, com algumas inferências, podem te incluir nas modelagens junto aos bilhões de inscritos. São os chamados “shadow profiles”. Com seus amigos na rede, eles conseguiram seu e-mail, telefone e nome. Com os serviços externos, eles conseguem rastrear suas atividades offline: quando você atendeu a porta, que pizza pediu na semana passada, pedalou de onde a onde… Boa sorte em morar numa cabana no interior do Mato Grosso do Sul. Você ainda vai estar no banco de dados.

Tá, vamos considerar que, por um milagre, você nunca entrou em um site que repassa dados ao Facebook. Como estão seus plugins do navegador? E seu antivírus? Outra forma de perguntar: quem está entre você e seu acesso à internet? Em 2019, um pesquisador descobriu que pelo menos oito add-ons para Firefox e Chrome revendiam os dados dos usuários. Na instalação, o add-on pedia permissão para ler o histórico e o que o navegador via. Pronto. Bastante popular, o Unroll.me era um serviço que, após ganhar acesso à sua caixa de entrada, descadastrava seu e-mail automaticamente de newsletters e mailings não solicitados. O serviço era gratuito, a grana vinha da venda do conteúdo das mensagens — a Uber, por exemplo, media a popularidade da rival Lyft a partir das mensagens enviadas ao fim de uma corrida. Muita gente caiu, eu incluso.

O caso mais escandaloso aconteceu em janeiro deste ano: apuração conjunta da Vice e da PC Mag mostrou que a Avast, dona de um dos antivírus gratuitos mais populares do mundo, oferecia a quem quisesse comprar o histórico detalhado das atividades online de 100 milhões de usuários, cerca de 25% da sua base total. O slogan é algo saído de 1984: “Every search. Every click. Every buy. On every site”. Tudo, em suma. É assim que empresas de todos os setores, mesmo as que têm serviços que você nunca usou, vão ter dados super granulares de tudo que você faz. Na sua defesa, a Avast alegou que os dados são anonimizados. O problema é que reverter a condição é fácil. O dado é anônimo, mas vem com um identificador do aparelho e localização de GPS. Qualquer Facebook e Google consegue ver na sua base quem tem as mesmas características e, pronto, desanonimizou. Não tem o banco de dados de Google e Facebook? Sem problema. No caso específico da Avast, os dados vendidos mostram as contas no Twitter com as quais o usuário mais conversa. É simples como abrir o Twitter. Depois da grita, a empresa prometeu matar a subsidiária responsável pelo serviço. Não adianta: Inês é morta.

Vamos lembrar que a Avast não atua originalmente no mercado de dados. Mas entrou.

Roomba no chão ignorando um canto da sala com comida de cachorro para demonstrar as "paredes virtuais" do sistema.
Varrendo a casa — incluindo a planta do lugar. Foto: iRobot/Divulgação.

Outro exemplo para mostrar quem também entrou. Você cansou de varrer a casa e comprou um desses robôs que rodam pelos cômodos varrendo e tirando pó. Imaginemos que, na sua revolta pela coleta de dados, o robô aspirador é seu único luxo eletrônico. Isso também não significa que você está seguro. Mais famoso dos robôs aspiradores, o Roomba é fabricado por uma empresa chamada iRobot. Todo Roomba registra os dados da casa que está varrendo. Depois de horas e horas, ele tem uma ideia bem clara da planta do apartamento ou casa. Talvez você não soubesse disso. Muita gente dona de um Roomba não sabia até o CEO da empresa cogitar, em 2017, vender os mapas para outras empresas. Depois da polêmica, entrou em ação a campanha do “veja bem, não era bem isso”. De novo, Inês é morta: a iRobot está no negócio de limpeza automatizada? Pense melhor3.

A “gadegtização” dos eletrodomésticos significa que TUDO vai te espionar. Colocar chips em geladeiras, filtros de água, máquinas de café e aspiradores de pó significa que, além das ações originais de cada um, eles também coletarão — e poderão passar adiante por uma grana — os produtos que você compra, quando você bebe água, as marcas das cápsulas que consome e as dimensões da sua casa.

O mercado permitiu que chegássemos a esse ponto porque as plataformas prometeram aos usuários que essa devassa na privacidade seria o melhor caminho para: 1) nos apresentar publicidade relevante para nossos gostos; e 2) baratear e até mesmo tornar gratuitos serviços essenciais. Um bom lembrete: o motor por trás da vigilância eletrônica atual é a publicidade. Não sei você, mas essa utopia nunca chegou a se concretizar: entre agora no seu no feed de Facebook e Instagram ou em sites populares e veja a qualidade abismal dos anúncios. Parece uma versão ainda mais escrota do 1406 — pílulas mágicas de emagrecimento, bugigangas para gastar menos energia elétrica e cursos de coach quântico para “destravar” seu cérebro como se ele fosse um videogame. Foi para ver um anúncio das meias Vivarina 2.0 (que piada de velho, Guilherme…) que eu dei às Big Tech todos os meus dados? De novo, o Cappello:

A história da vigilância em qualquer sociedade é a história da disputa entre duas tendências: uma concepção positiva de vigilância como necessária para o controle social e uma concepção negativa dela como uma ferramenta usada para limitar liberdade e privacidade.

Para governos, vale. Para a vigilância feita pela iniciativa privada como modelos de negócio, a concepção é de uma ferramenta que promete benefícios praticamente inexistentes para colher tudo a respeito da sua vida, sem qualquer fiscalização.

Quadro de um comercial de TV das meias Vivarina.
Frente à qualidade da publicidade nas redes sociais, o 1406 é quase uma obra de arte.

E o que dá para fazer? Inês não só é morta, seu corpo já apodreceu sob um sol camusiano, mas, por alguma razão, a gente ainda não consegue sentir o cheiro. Eu tenho a forte percepção de que o público em geral não dá a bola para o abuso da nossa privacidade online. Talvez a gente não dê tanta bola por ainda não ter visto um exemplo prático e assustador do uso desses dados. Há suspeitas de que os dados pessoais de milhões de pessoas foram fundamentais, por exemplo, para interferir nas eleições norte-americanas a favor do presidente Donald Trump. Mas é suspeita. Não há a confirmação e eu mesmo tenho minhas dúvidas sobre a efetividade alardeada pela Cambridge Analytica na eleição de Trump. O fato de não ter um exemplo explícito de alguma consequência nefasta torna difícil para as pessoas julgarem a devassa online como algo ruim, ainda mais quando essa devassa permite o uso de serviços gratuitos. Não se engane: o fato de não ver não quer dizer que os dados não estejam sendo usados de forma escrota. Como? A gente já falou aqui de modelagens de aprendizagem de máquina mal treinadas que ignoram minorias. São seus dados usados para treinar esses algoritmos, bonitinho e bonitinha. Tem outro ponto: você tem todo o direito de não querer que uma empresa colete, compre, receba de um terceiro ou retenha seus dados. Eles são seus. É simples.

De volta ao começo: privacidade é a capacidade que temos de controlar quem tem acesso a nós, seja ao espaço físico ou às informações pessoais, seja para permitir como para negar. O atual estado do capitalismo de vigilância não é só a escala, mas a total falta de regras. Você não está no comando da forma como seus dados são coletados, armazenados, tratados e modelados. Você não sabe ao certo nem quais dados quais empresas têm e de onde elas os tiraram. Quando alguém abre um tiquinho da cortina e mostra um novo dado, como foi o Atividade Fora do Facebook, vem o choque por perceber que essas empresas sabem muito mais do que se supunha. Somos todos o Gary Hart, achando que está tudo sob controle, quando, na verdade, o trator está passando por cima da gente.

O GPDR na Europa, a LGPD no Brasil e o CCPA na Califórnia tendem a colocar um mínimo de regras, mas ainda é pouco. É preciso ter total controle. “Para começar, a habilidade de controlar seus próprios dados privativos precisa ser reconhecida como um direito humano fundamental”, assim como o direito de movimento, pensamento, religião e expressão, defende Cappello. Ele tem 100% de razão nisso. Ele também defende o direito de ser esquecido, mas eu tenho minhas dúvidas.

O ponto é que a vigilância não vai desaparecer. É hora de atualizar nossa noção de privacidade e parar de viver num delírio anacrônico. O governo vai te espionar independentemente da tecnologia disponível, com algumas limitações e alguns abusos. Na iniciativa privada, o que se espera é que a vigilância deixe de ser uma certeza para ser uma possibilidade. O primeiro passo é que se tenha uma opção de decidir para quem você vai abrir sua privacidade, da mesma forma como humanos interagem entre si.

Foto do topo: Japanexperterna.se/Flickr.


  1. A história de como os dois jornalistas, Bob Woodward e Carl Bernstein, foram desenrolando o fio da apuração e como a publisher do Post, Katharine Graham, segurou a enorme pressão política está bemcontada em alguns livros e no filme Todos os homens do presidente, com o Dustin Hoffman e o Robert Redford nos papéis principais.
  2. A história do Hart também virou filme: O favorito, com o Hugh Jackman no papel do senador. O cara não ganhou a presidência, mas o visual foi generosamente melhorado quando escolheram Jackman para interpretá-lo.
  3. Se você tem um aspirador do tipo e não gostou de saber isso, calma: existe um jeito de desabilitar.

Índice 20#3

Newsletter

O Manual no seu e-mail. Três edições por semana — terça, sexta e sábado. Grátis. Cancele quando quiser.

Deixe um comentário

É possível formatar o texto do comentário com HTML ou Markdown. Seu e-mail não será exposto. Antes de comentar, leia isto.

5 comentários

  1. Grande Guilherme. Episódio muito bem amarrado. Como de costume!
    Queria fazer dois comentários:

    1 -Há quem sugira que o big data pode chegar a ponto de ter tanta informação pessoal (mesmo ‘anonimizada’) que passa a ser possível até mesmo a previsão de comportamentos…e isso combinado com as possibilidades do machine learning….da até medo das possibilidades de manipulação e controle.

    2- um autor chamado Jaron Lanier propõe que a partir da garantia do direito individual de propriedade sob dados pessoais, se poderia gerar renda para os proprietários dos dados pelo uso destas informações por plataformas e afins…ele sugere que a indústria da vigilância pode ser tão luctativa que poderia até remunerar os usuários ao invés de cobrar pela utilização de serviços…talvez fosse ‘justo’.

    Abraço!

  2. eu adoro as colunas/podcasts do felitti, mas eu IMPLORO por favor para não usar a expressão “planta baixa” ?

    sei que é rabugice minha — porque a língua é viva e obviamente se uma expressão é amplamente usada não há motivos para alegarmos que as pessoas deveriam parar de se referir desse jeito às coisas, já que a relação pragmática com as palavras influi no significado delas — mas “planta baixa” é espanhol mal traduzido: “planta baja” é literalmente o pavimento térreo (e “planta alta” é o pavimento superior). Tanto é que em Portugal a “planta baja” pode se traduzir como “rés-do-chão”.

    Para se referir à projeção ortográfica horizontal em um plano bidimensional usada para descrever espaços arquitetônicos, podemos usar apenas a palavra “planta”.

    :)

    enfim, desculpem a rabugice, sei que falar em “planta baixa” não vai alterar a vida de ninguém, mas como sou chato resolvi deixar o desabafo ?

    1. não tinha a menor ideia, gabriel. eu também tenho minhas rabugices desse tipo. depois da aula do teu comentário, mudamos. abs!