Criar um serviço online onde as pessoas interagem, como uma rede social, não é fácil. Ao oferecer ferramentas para que seres humanos publiquem qualquer coisa com o intuito de interagir na internet, você é confrontado(a) com algumas questões sérias que quase nunca têm respostas fáceis ou óbvias.
Um exemplo prático: em 2006, a apresentadora Daniela Cicarelli entrou no mar em uma praia espanhola com seu então namorado e o casal aproveitou para expressar seu amor ali, publicamente. Você já sabe que o Tecnocracia não é nada moralista nessas questões, mas qualquer um que já tenha transado em água doce sabe que colocar sal na equação não torna a dinâmica mais fácil, mas enfim. Enquanto os dois se amavam em público, um paparazzi registrava tudo e, posteriormente, publicou o vídeo na internet. Em 2006, o maior site de vídeos do Brasil se chamava Videolog e tinha sido criado dois anos por uma dupla de amigos do subúrbio do Rio de Janeiro — já contei a história do Ariel Alexandre e do Edson Mackeenzy no Tecnocracia #29, se você ainda não ouviu como esses dois radialistas criaram o YouTube antes do YouTube, vale a pena.
A primeira versão do vídeo da Cicarelli transando na praia foi republicada dezenas de vezes em todos os sites de vídeo disponíveis, incluindo Videolog e YouTube. Assim que começou a ganhar tração, os advogados da apresentadora tentaram entrar em contato com todas as plataformas exigindo a remoção e ameaçando ações legais. No Videolog, a ameaça não foi exatamente uma novidade — com a popularidade, funcionários tinham sido alocados exclusivamente para limpar a plataforma de vídeos com conteúdo criminoso, como pedofilia, por exemplo. Sem uma conta bancária recheada nem uma estrutura jurídica forte, o Videolog tirou o vídeo e todas suas cópias do ar. O que os advogados da Cicarelli não conseguiram foi contato com o YouTube, que àquela altura tinha um ano e ainda operava em um escritório apertado em cima de uma pizzaria em San Francisco; filiais pelo mundo só viriam anos depois, após o YouTube ser comprado pelo Google.
Sem ter um canal de contato, a remoção do vídeo da transa do YouTube foi mais difícil. Como o site operava nos Estados Unidos, não precisava respeitar a jurisdição brasileira. A alternativa legal encontrada subiu um tom: se o site não tira o vídeo, então que se tire o site do ar. Os advogados entraram na Justiça pedindo o bloqueio do YouTube no Brasil inteiro e, inacreditavelmente, foram atendidos. As operadoras bloquearam o acesso ao YouTube no Brasil por alguns dias.
O bloqueio do YouTube é relevante para a história da internet no Brasil em alguns pontos, mas o que eu quero focar agora são dois: 1) o YouTube ganhou um enorme empurrão com Cicarelli transando na praia (seja pelos dias em que o vídeo estava disponível só ali ou porque muitos só o conheceram pelas notícias do bloqueio); e 2) o Videolog acabou “punido” pelo esforço em manter a plataforma livre de conteúdo ilegal, já que seu principal rival não o fez.
No último Tecnocracia da primeira temporada, a gente falou de como a briga para manter os monopólios tinha se tornado explícita em 2019. Os gigantes da tecnologia abandonaram aquela carinha de anjo e assumiram atitudes que não tinham mais qualquer relação com a narrativa positiva contada durante mais de uma década para convencer usuários e governos de que suas ações só tinham boas intenções. Assim como ocorreu com a indústria tabagista, a partir de certo momento todo mundo percebeu que o produto era nocivo à saúde, o que não impediu as empresas de continuarem vendendo, ainda que cientes dos impactos negativos à sociedade. Dois mil e dezenove foi isso para a Big Tech: ficou explícito como o uso excessivo de redes sociais e o modelo de negócios baseado em publicidade tinha impactos sérios na sociedade. Sem mais historinhas, restava às empresas manter a toada e adotar políticas para proteger seus balanços, acionistas e executivos.
E o que foi 2020? Foi a explicitação desse processo iniciado no ano passado. A pandemia da COVID-19 forçou uma digitalização às pressas de muitos processos analógicos, o que acabou nos jogando ainda mais no colo da Big Tech — não à toa, as empresas de tecnologia, juntas, passaram a representar quase 40% no índice S&P 500, índice que agrupa as 500 maiores empresas de capital aberto dos Estados Unidos, maior concentração dos últimos 30 anos, segundo análise do Dow Jones Market Data publicada pelo The Wall Street Journal. O valor de mercado de todas as gigantes aumentou enquanto a economia global mergulhou em uma crise que deverá ter reflexos durante uma década, o que fez com que Jeff Bezos, Mark Zuckerberg, Larry Page e Sergey Brin se tornassem ainda mais ricos. Quando alguém calcular o Índice de Gini da economia global em alguns anos, 2020 certamente mostrará uma queda preocupante.
Essa vantagem tornou a Big Tech indolente por estilo, ainda que os processos legais contra concentração de mercado tenham caminhado a passos rápidos e a eleição de Joe Biden para a presidência norte-americana indique que, a partir de janeiro, eles deverão se tornar ainda mais céleres. Para voltar ao início do podcast, as grandes empresas, confrontadas com algumas questões de difícil resolução, tentaram se eximir de qualquer responsabilidade e se movimentaram o mínimo possível para tentar aplacar os problemas legais que as esperam sem, no entanto, alterar o modelo de negócios que lhes dão receitas e lucros enormes e, ao mesmo tempo, geram essas questões difíceis.
Fiz questão de abrir o episódio deixando claro que algumas dessas questões são difíceis para que a gente não se engane achando que tudo é moleza e que a falta de ação é só preguiça. Não é. Poucas coisas na vida são preto no branco — aqui a gente está navegando entre muitos tons de cinza que a Big Tech explora para embaralhar a discussão.
Imbuídas dessa empáfia, crentes na historinha edificante contada há tantos anos de que a responsabilidade não é delas, as grandes empresas de tecnologia ignoram uma série de soluções que poderiam ajudar na mitigação do problema e agem apenas para o teatro das relações públicas. Para debelar o incêndio da casa, lá vem elas com um copo de água, seguido por fotos sorridentes para a imprensa logo depois. O discurso é de vitória, enquanto o problema não foi resolvido — o fogo segue queimando o imóvel
Há duas esferas que exemplificam essa empáfia, essa relutância em se mover além do mínimo necessário: a desinformação e a competitividade. Comecemos pela desinformação, principalmente na eleição norte-americana e na pandemia de COVID-19.
Tendo em vista que Donald Trump já tinha dado indícios claros de que rejeitaria e questionaria os resultados da eleição caso não ganhasse, as plataformas resolveram lançar algumas medidas preventivas: o Twitter passou a carimbar os tuítes em que Trump questionava os resultados eleitorais com alertas sobre a mentira, o Facebook adotou medidas para frear a disseminação de conteúdo inflamatório e o Instagram anunciou que tiraria do ar temporariamente a página Explore, admitindo que ela poderia ser usada de forma nociva para influenciar as eleições, o que colocou o app numa sinuca de bico: ao tirar a aba do ar por medo do seu mau uso eleitoral, o Instagram admitia o potencial nocivo da ferramenta. Por que voltá-la ao ar depois das eleições, então? A manipulação está liberada se não for eleitoral? Existe um motivo, lógico: o modelo de negócios. Por outro lado, o YouTube fechou um acordo para que anúncios de Trump ocupassem a tela inicial nos dias anteriores à eleição.
No geral, porém, houve um sentimento positivo frente à atividade (no sentido contrário à passividade) das grandes plataformas. Após passarem anos dando de ombro para seus efeitos na sociedade, principalmente em eleições (Mark Zuckerberg chegou a dizer que achava uma loucura a ideia de que o Facebook tivesse influenciado as eleições norte-americanas), as Big Tech pareciam ali assumir a responsabilidade que suas imensas plataformas de comunicação têm. Era um bom sinal, ainda que claramente resultado do calor recebido tanto pelas investigações do governo norte-americano e da União Europeia como pela repercussão dos escândalos entre os consumidores.
Passado o dia da eleição, a alguns dias da confirmação da vitória de Joe Biden, acabou o teatro — a Big Tech voltou a ser Big Tech. As matérias positivas na imprensa já tinham sido encartadas no clipping, os departamentos de comunicação já tinham comemorado com seus champagnes remotos. A boa vontade tinha secado. Um container de pastel de nata para quem adivinhar qual da Big Tech melhor representa esse cavalo de pau. Facebook, né? Essa estava fácil.

Assim que as urnas foram fechadas, republicanos e eleitores de Trump insatisfeitos com os resultados divulgados até então começaram a se reunir em grupos no Facebook. O maior deles, chamado “Stop the steal”, atraiu mais de 320 mil pessoas em menos de 24 horas. O conteúdo do grupo era um creme de desinformação, constituído principalmente pelas teorias difundidas pela milícia online QAnon, e de incitação à violência. O primeiro veículo a reportar foi o Mother Jones na manhã da terça-feira em que o grupo foi criado. A cobertura da mídia pegou daí, com inúmeros prints sobre acusações absurdas e ameaças de violência física. Uma rápida investigação mostrou que os responsáveis pelo grupo eram próximos de Steve Bannon, estrategista político tão ligado a Trump que fez parte do seu governo.
“Stop the Steal é uma tentativa explícita de interferir na contagem de votos da eleição norte-americana. O grupo é operado por indivíduos com laços próximos a Trump. Se o Facebook está falando sério em combater tentativas de enfraquecer a eleição, o grupo precisa ser fechado”, escreveu no Twitter o Center for Countering Digital Hate, organização britânica que estuda como a divulgação de mensagens de ódio é organizada em redes digitais. No mesmo dia, com a crescente cobertura da imprensa, o Facebook tirou o grupo do ar.
O problema é que, assim que o grupo original saiu do ar, centenas de outros surgiram para tentar pegar o vácuo. Alguns eram pegadinhas contra os trumpistas delirantes. Outros eram reais e continuaram no ar, repetindo mensagens com o mesmo teor conspiratório e violento por quase um mês. O OneZero publicou que tinha achado dois outros grupos “Stop the steal” com mais de 100 mil usuários somados que continuavam ativos no fim de novembro. O Facebook só foi tirá-los do ar em 1º de dezembro, quase um mês depois da eleição.
Repetiu-se a dinâmica já vista em tantos outros casos, como a veiculação de um símbolo nazista pela campanha de Trump em junho: a ação do Facebook é sempre passiva. Precisou a imprensa, com menos ferramentas que a empresa, mostrar o absurdo para que a rede social agisse. Com valor de mercado de ~US$ 800 bilhões, o Facebook tem alguns dos/as melhores cientistas de dados do mundo, gente por trás de frameworks de código aberto que toda a internet usa. Ainda assim, parece incapaz de criar um algoritmo simples que acenda uma luz amarela quando grupos com temas políticos ganham milhares de novos usuários em poucas horas ao discutirem atos de violência física. Se você não entende nada de programação para avaliar a dificuldade disso, eu te digo: é moleza para quem tem os recursos que o Facebook tem.
No dia em que o “Stop the steal” original saiu do ar, duas fontes anônimas vazaram para o New York Times que o Facebook pretendia acrescentar maneiras de frear o fluxo de desinformação, coisa como um ou dois cliques a mais para “aumentar o atrito” na hora de compartilhar conteúdo.
A ideia é boa. O Twitter não só estava analisando como já implementou a mudança ao levar o usuário à tela de comentário quando se quer retuitar algo. Dois pontos me chamam a atenção nessa notícia. Primeiro: o Facebook diz que está pensando em formas de frear a disseminação de desinformação política depois das eleições? Segundo: no que deu o anúncio, que tem totalmente cara de que alguém do departamento de relações públicas vazou? Nada. Seguiu-se a mesma dinâmica que já falamos aqui: faz um release, vaza uma informação, notícias na imprensa dão a impressão de que a rede social está preocupada, deixa o incêndio resfriar, esquece a parte prática do anúncio. Repita ad infinitum.
Sejamos honestos, não foi só o Facebook. No YouTube, a desinformação sobre eleições se espalhou sem muito problema. Mark Bergen, jornalista da BusinessWeek Bloomberg, resumiu no Twitter: “um novo ritual matutino: abrir o último vídeo da OANN alegando que Trump ganhou no YouTube. Ver o anúncio. Perguntar ao Google sobre. Ouvir o Google dizer no fim do dia que vão tirar os anúncios. Enxaguar, repetir”. A OANN é a One American News Network, uma rede de notícias que ocupou o vácuo na preferência de Trump deixado pela Fox News assim que a rede de Murdoch cravou, timidamente, a vitória de Biden e cobriu com uma inesperada isenção (na maior parte das vezes) as suas tentativas fracassadas de fraudar o resultado eleitoral para dar um golpe de estado. Está explícito que a OANN é um braço do delírio político de onde vem também o QAnon travestida de fonte de notícias. Que o YouTube deixe o canal ganhar dinheiro com monetização enquanto tenta fundamentar um golpe de estado é assustador para a sociedade. O YouTube deve discordar, já que também está ganhando com isso.
Voltemos ao começo do episódio. Liderar um serviço interativo online te coloca à frente de questões sem respostas fáceis. Deixa eu colocar uma dessas questões. No início da pandemia, o Google se comprometeu a manter o YouTube limpo de desinformação sobre COVID-19, vacinas e tratamentos. Os pesquisadores Dayane Machado, da Unicamp, Alexandre Fioravante e Leda Gitahy, da Universidade de Berkley, encontraram 52 vídeos no YouTube Brasil que driblaram esse filtro e continuavam no ar espalhando mentiras absurdas sobre vacinação. Um quarto desses vídeos continuava monetizado. Minha empresa de data analytics, a Novelo Data, encontrou quase 200 vídeos espalhando desinformação sobre vacinas no Brasil ao usar termos como “vachina”. Você mesmo pode fazer esse exercício: entra no YouTube agora e busca por “vacina chinesa”. Dica: prepare o escafandro.
O que o monitoramento da Novelo mostra é que alguns vídeos específicos sobre COVID-19 foram deletados, como um que era contrário ao uso das máscaras e outro que chamava a doença de “gripezinha”. O que diz a política do YouTube sobre desinformação envolvendo COVID-19? “Aqui estão alguns exemplos de conteúdo que não é permitido no YouTube: negação da existência da COVID-19; alegações de que pessoas não morreram de COVID-19; alegações que um tratamento ou remédio específico é uma cura garantida para COVID-19”. A lista é longa, mas eu quero me focar neste último. Se o YouTube seguisse à risca sua própria política, já teriam saído do ar milhares de vídeos alegando que cloroquina representa uma cura, inclusive vídeos do Governo Federal que alegam ser um tratamento precoce contra COVID-19. Quer outro exemplo? Entre agora no YouTube e busque por OMS. São centenas de vídeos com a participação de médicos picaretas espalhando desinformação travestida de opinião científica sobre a ineficácia do isolamento, o sucesso da cloroquina ou sobre o perigo de vacinas, alguns de canais com milhões de seguidores, como daquela rádio que você conhece.
Voltando ao caso do vídeo do OAN, o YouTube respondeu o tuíte do jornalista Mark Bergen alegando que “como as outras companhias, nós estamos permitindo esses vídeos já que as discussões sobre resultados das eleições e o processo de apuração de votos é permitido no YouTube. Esses vídeos não estão sendo recomendados ou sugeridos de qualquer forma proeminente”. O que o YouTube não fala é que, sim, alguns desses vídeos continuam sendo recomendados e que não ser recomendado ajuda, mas não resolve, dado que muitas das campanhas de desinformação usam o site apenas como repositório, enviando milhões de pessoas por outros canais de comunicação, como o próprio Google, grupos de discussão e apps de mensagem como o WhatsApp.
Ou seja: o tuíte tenta turvar as águas e se engalfinha numa discussão de filigranas, uma (desculpe meu francês) punheta argumentativa. Enquanto a divisão de relações públicas comemora, a desinformação continua lá. É a mesma abordagem dos trolls online, dessa vez replicada por uma empresa que vale mais de US$ 1 trilhão!
Dado que não existe transparência na forma como o YouTube lida com isso (a empresa faz sem alarde e não explica direito as decisões, o que nos restringe aos indícios colhidos quando se faz essa “engenharia reversa”) e baseado em tuítes que carregam um discurso para confundir a discussão sem, no entanto, resolvê-la, nota-se como o esforço feito pelo YouTube para resolver o problema de desinformação se restringe, tal qual o Facebook, ao mínimo possível. Porque mexer demais nessa estrutura é mexer demais também na forma como o YouTube ganha dinheiro.
Por isso YouTube, Facebook e qualquer plataforma que dependa de anúncios sobre a interação da sua base de usuários adota uma estratégia que a Luciana Gimenez chamaria de cherry picking: você tira um e outro para dizer que está fazendo algo, mas centenas deles continuam lá, o que faz com que a campanha de desinformação continue sem empecilhos. Você jogou um copo d’água no incêndio, não resolveu porra nenhuma e está posando vitorioso para as câmeras. Porque o incêndio da casa não é um problema. Seu negócio fatura mais com a casa pegando fogo, não com ela pré-queimada ou só rescaldo. O teu objetivo é deixar a casa pegar fogo e acalmar os críticos sugerindo ações não efetivas em larga escala.
O que os exemplos envolvendo eleições e COVID-19 nos mostram é que, sozinhas, as empresas que nos colocaram nessa enrascada, nesse mercado de polarização, de ódio alimentado por algoritmos, não vão nos tirar magicamente dela. Dois mil e vinte nos mostrou explicitamente que, sem qualquer tipo de interferência externa, essa realidade continuará. E não basta ser qualquer tipo de interferência. Mesmo com o maior processo antitruste dos últimos 20 anos baforando no cangote, a Big Tech se movimentou para tomar decisões que qualquer pessoa com o mínimo de bom senso já teria tomado há anos.
Em outubro, o Facebook anunciou que baniria conteúdo que questionava o Holocausto. Pare para pensar nisso: a Segunda Guerra Mundial acabou em 1945. As atrocidades nazistas no Holocausto são amplamente conhecidas há 75 anos. Por 16 anos, o Facebook permitiu que a escória da humanidade usasse a maior máquina de comunicação da história para negar esse crime. De novo, não foi só o Facebook. David Duke, a principal figura do KKK, só foi banido do YouTube em junho de 2020. Um mês depois, o Twitter o baniu também. Os linchamentos e enforcamentos de negros promovidos pela KKK nos Estados Unidos são conhecidos há mais tempo que o Holocausto e, ainda assim, YouTube e Twitter deixaram essa escória livre durante anos para espalhar racismo e antissemitismo por suas plataformas. Desde 1939, a Billie Holliday canta sobre os estranhos frutos nas árvores do sul dos EUA, os corpos ensanguentados de negros espancados pela KKK. Por mais de uma década, tudo bem por Facebook, YouTube e Twitter dar espaço para o herdeiro intelectual de quem colocava os corpos nas árvores, desde que o lucro viesse junto.
Tem gente cuja opinião eu respeito e confio que discorda do meu ponto que as plataformas devem, sim, filtrar conteúdo que tem impactos negativos na sociedade. Há um inegável perigo sobre onde as plataformas traçam essa linha, principalmente se elas tiram as decisões do nada. Há uma solução aqui: o Código Penal. Repetindo o que já foi dito no Tecnocracia #35: “a primeira emenda nos EUA é muito mais permissiva na noção de liberdade de expressão do que o artigo 5º da Constituição Federal, que trata do assunto. No Brasil, usar símbolos nazistas, como fez a campanha do Trump no Facebook, não é liberdade de expressão, é crime. Defender o fechamento do Congresso e do STF? Crime também.” E quando não há tipificação ainda? Desencorajar vacinação e defender métodos não eficazes de tratamento, por exemplo, não são crimes, mas têm um impacto negativo na sociedade, principalmente quando são repetidos por uma figura pública como o presidente. Aí é uma questão moral mesmo. Pior: o YouTube, por exemplo, já definiu regras próprias sobre não mostrar conteúdo enganador sobre COVID-19. Falta-lhe executá-las. “Quero ver quando não for alguém da extrema-direita falando isso”. Bicho, se um sujeito da extrema-esquerda, esquerda, centro ou direita1 alega que os sobreviventes da escola Sandy Hook são atores contratados ou que a COVID-19 é uma doença fabricada em laboratório que não traz danos nenhum ou contra qualquer coisa fortemente apoiada pela ciência, a punição tem que ser a mesma: banimento. Isso não se chama censura, se chama civilização. Só que a Big Tech escolhe quando aposta no pacto civilizatório e quando aposta no caos. Por exemplo: banir defensores do nazismo não é censura, como já falamos. A Alemanha proíbe por lei discurso nazista, algo que o Facebook acata sem descuido. A dificuldade não é operacional ou técnica, é moral. Se existir uma forma não vedada por lei de a Big Tech lucrar com genocídio, tenha certeza que ela o fará, ainda que tente mostrar ao mundo que está preocupada traçando regras que ela mesma não segue.
Há outro ponto para analisar a empáfia da Big Tech em 2020: a competitividade (ou falta dela). Pergunta genuína: qual foi o último serviço digital para usuários finais realmente inovador, que mudou as regras do jogo? Quer pensar? O TikTok, uma empresa que nem nos Estados Unidos surgiu e, exatamente por isso, foi alvo da fúria da Big Tech norte-americana e de uma ação atabalhoada (e sem base legal) do Governo Trump, ainda que partisse de uma preocupação justa. No ano que vem a gente vai explorar melhor essa história. Meu ponto é que as gigantes de tecnologia estão acomodadas nesse oligopólio. Existe uma ou outra rivalidade aqui e ali, mas, no geral, cada um está bem confortável com seu monopólio específico: o Google em busca e vídeos, o Facebook em mensagens e redes sociais, a Apple em hardware, a Microsoft em software de produtividade, a Amazon em varejo digital e computação em nuvem (talvez computação em nuvem seja a área com maior competitividade, hoje, no setor: Amazon Web Services na frente, Azure atrás e Google Cloud em terceiro, o que ajuda a explicar o tanto de inovação que vem dali).

Qual é o marco inicial desse cenário? Pela minha teoria, o Facebook clonando o Snapchat no Instagram Stories e saindo ileso ao desossar um rival usando seu tamanho de mercado sem qualquer resistência antitruste. A partir do momento em que o Stories decola e esmaga o Snapchat, o mercado entende que, sem punições, as gigantes podem fazer o que quiserem. O episódio fecha a porta para que entrantes enfrentem as maiores com base em inovação. Quer outro exemplo? O que a Microsoft fez com o Slack é tão explícito quanto. O fato de que todas as plataformas copiaram o modelo do Stories deixa todos os serviços mais ou menos iguais, sem incentivo para ninguém tentar nada de muito novo. É o que o Rasmus Kleis Nielsen, professor de comunicação política da Universidade de Oxford, chamou de “competição oligopolística”.
Entramos no que eu chamo de “internetexplorer6rização” do mercado de internet. Uma história para explicar o neologismo: quando o Netscape, primeiro navegador de sucesso, fez seu IPO e mostrou que tinha dinheiro a ser feito na internet, a Microsoft aproveitou seu tamanho de mercado, criou o Internet Explorer e passou a instalá-lo nas milhões de máquinas com Windows vendidas todo ano. A ação foi o que desengatilhou o processo antitruste e suas consequências no médio prazo (o primeiro episódio da segunda temporada do Tecnocracia é sobre isso), mas, a curto prazo, o Internet Explorer 4 matou o Netscape e se tornou praticamente o único navegador do mercado por quase uma década. A Microsoft o atualizou ainda por duas vezes, mas, com tamanha dominação, deitou em berço esplêndido. Até então, o espaço de tempo entre as atualizações era de até 2 anos. O Internet Explorer 6 saiu em 2001. O 7, só em 2006. Durante esses cinco anos, a gente achava que aquilo era o mais avançado que havia, que não tinha mais tanta coisa a ser inventada, uma máxima falaciosa que se manifesta em vários episódios da história da internet. O que mudou? Em 2004, um grupo de programadores desenvolveu um novo navegador que apresentava ideias bem interessantes, como o uso de abas e a navegação privada. O Firefox nasceu usando muitas ideias que o Netscape cogitava antes de quebrar. O sucesso do Firefox forçou a Microsoft a voltar a desenvolver o Internet Explorer — a versão 7 tinha várias das ferramentas introduzidas com sucesso pelo Firefox. A Microsoft só se mexeu quando tinha um rival com tamanho o suficiente para ameaçá-la. Depois veio o Chrome do Google e tratorou ambos com facilidade, mas essa é outra história — que periga repetir a do IE6.
No estágio em que estamos, a internet comercial é toda um Internet Explorer 6: serviços com os quais já estamos acostumados e, por isso, achamos que são as coisas mais avançadas disponíveis. Sem rivais diretos para ameaçá-los e copiando na cara dura o que de interessante surge na concorrência, é fácil deitar em berço esplêndido e manter o serviço sem grandes novidades originais. Os mensageiros são mais ou menos os mesmos de cinco anos atrás, as redes sociais também, os e-mails, o comprar online, a busca, o ouvir música… “Ah, Guilherme, é que tudo já foi inventado”. Errado, bonitinho e bonitinha. Ainda tem muita coisa a ser inventada, muita melhoria a ser feita.
Basta olhar a questão da desinformação. Existem algumas medidas simples que podem ser implementadas para frear o fluxo de desinformação que não envolvem algoritmos de aprendizado de máquina ou clusters de computação em nuvem. Para ficar em algumas sugestões:
- Para o YouTube: definir uma política pública sobre alegações de falsa vitória e crime eleitoral, filtrar todo o tráfego do YouTube vindo do Google com buscas sensíveis (tipo “Trump ganhou”), banir todos os anúncios hipersegmentados até que um vencedor fosse anunciado;
- Para o Facebook: para começo, manter a autonomia dos grupos de checagem (seguidas vezes esvaziados por interesses comerciais) e desabilitar a manchete, a imagem de pré-visualização e a capacidade de compartilhamento de conteúdos com selo de falso dado pelos grupos de checagem independente; e
- Para todos: se livrar do botão de compartilhamento. “Seria fácil culpar o botão de compartilhamento por todos os males da sociedade. Mas livrar-se deles poderia resultar em um mundo de benefícios. Pergunte ao Instagram, que se recusa insistentemente a adicionar um botão de ‘regram’ há anos, e, como resultado, teve menos problemas com escândalos de desinformação que seu dono, o Facebook. Outras plataformas que experimentaram formas de adicionar fricção ao compartilhamento, como Twitter e WhatsApp, descobriram de maneira geral uma melhora em seus serviços”, escreveu o jornalista Kevin Roose no New York Times. Ele tem razão.
O ponto é que nenhuma plataforma vai atrás já que as alterações trabalham contra o próprio modelo de negócios. A necessidade de ter engajamento para vender publicidade joga contra a ponderação, a civilidade e, no fim, a democracia. É por isso que, sempre que confrontadas com ameaças de sanções e críticas pelo desinteresse em resolver o problema, as Big Tech argumentam que essas resoluções são difíceis. Voltando ao começo do episódio, sem dúvida existem questões que exigem análise cuidadosa, mas, antes dessas, já existem dezenas de melhorias possíveis, solenemente ignoradas.
O mercado de tecnologia ascendeu na última década com um discurso de onipotência: todos os problemas do mundo são resolvíveis, basta querer e aplicar seu talento. Um dos fundadores do Google, inclusive, levou essa máxima ao extremo ao investir uma bolada para tentar derrotar a própria morte. É um discurso delirante que se entranhou e continua vivíssimo nesse movimento de coaches. Confrontadas pelos problemas que elas mesmas criaram e se negam a tomar responsabilidade, essas empresas vão para o oposto extremo do pêndulo: tudo é difícil, custoso, não escala. Viram, magicamente, impotentes, incapazes. É truque, jogo de cena. E se você espera que esse teatrinho pare por um ataque fulminante de consciência, então, bonitinho e bonitinha, passa um café, senta na sua poltrona mais confortável, coloca o Guerra e Paz no colo. Em 2020, beneficiadas pela migração forçada à internet por causa da pandemia, as gigantes de tecnologia deixaram claro que vão fazer só o mínimo possível para mudar o mínimo possível e não arriscar a impressora de dinheiro que cada uma tem em suas sedes — dinheiro em troca da nossa atenção, nossa saúde mental, nosso direito de ficar em paz. As empresas que nos colocaram nessa enrascada não vão nos tirar dela sozinhas, sem uma força externa.
O Tecnocracia nasceu com o intuito de levantar os principais negativos da popularidade da tecnologia no nosso dia a dia, dado que o mercado nasceu embalado e continua ainda nessa inércia otimista. Muita coisa no nosso uso de tecnologia é ruim, prejudicial, preconceituosa, escrota. A boa vontade dos bilionários do Vale do Silício é o nosso Godot. Claro, existem os processos antitruste, mas eles demoram um tempo. A melhor alternativa que nos resta é cuidarmos de nós mesmos, uma tecla na qual eu bati muito esse ano. Descanse. 2020 foi um ano muito duro para todo mundo e eu não quero ser chato, mas 2021 não parece que será muito melhor. Entremos no novo ano, então, com a cabeça descansada.
- Registre-se que, em 2020, tanto pelo conteúdo como pelo alcance, a imensa maioria dessas campanhas de desinformação nasce e se multiplica na extrema-direita. ↩
Edição 20#46
- Tecnocracia As empresas que nos colocaram nessa enrascada não nos tirarão dela
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- Live Guia Prático ao vivo
- Vamos conversar? Post livre #251
Guilherme, obrigado pelo melhor podcast da podsfera brasileira, que é muito boa! Esse ano, no meu playlist, o tecnocracia venceu o Xadrez Verbal e o Foro de Teresina, o que não é pouca coisa. Boas festas e volte com tudo em 2021!