Depois do terrorismo clínico, mais uma vez reforçado na apresentação de novos produtos nesta quarta (7), com outra leva de relatos de usuários do Apple Watch salvos por seus relógios de ataques cardíacos e de ursos, o marketing da Apple ampliou os tipos de terrorismo a que sujeita o consumidor na ânsia de vender mais telefones e relógios.
Comecemos pelo terrorismo existencial. Com preços a partir de R$ 7,6 mil, o recém-anunciado iPhone 14 é capaz de emitir pedidos de socorro a satélites, mesmo em lugares onde não há sinal da operadora ou qualquer rede Wi-Fi por perto.
Sem um iPhone 14, ameaça a Apple, o que você fará quando se ver perdido no meio do nada?1
Em outro momento da apresentação, a Apple nos introduziu ao terrorismo automobilístico. Os novos Apple Watch e iPhones contam com um recurso exclusivo capaz de detectar acidentes de carro e chamar o SAMU automaticamente.
A empresa alega que muitos acidentes acontecem em áreas isoladas e envolvem apenas um carro, ou seja, se você não tiver as últimas versões das iBugigangas, periga morrer sozinho, agonizando dentro do seu carro em local ermo.
Há algo de diferente no “storytelling” da Apple. Seu clássico consumidor ideal, aquela pessoa feliz, de bem com a vida, que tira fotos dos amigos em festas sofisticadas e tira férias em paisagens paradisíacas, deu lugar a uma miríade de personas, das paranóicas que acham que vão morrer na próxima esquina se não tiver um Apple Watch no pulso às que aspiram ser alguma coisa “Pro” sem se dar ao trabalho que, regra geral, espera-se de alguém considerado “Pro”.
Vide o Apple Watch Ultra, a nova versão do relógio da empresa focada em aventureiros, público que até agora estava melhor servido pela rival Garmin. Com acabamento mais robusto, bateria maior e recursos projetados para situações extremas, o Ultra é, como alguém comentou jocosamente, um Apple Watch para dez pessoas no mundo — gente que participa do Iron Man, que escala o Everest, que cruza o Saara a pé.
Por óbvio, a Apple não espera vender só dez unidades do Apple Watch Ultra. Ele tem igual ou mais apelo a uma fatia muito maior do público — gente que gostaria de ser mais aventureiro, que planeja ou até mesmo faz umas caminhadas mais extensas vez ou outra, que aspira ser como os personagens do comercial bonitão que a Apple preparou para vender um relógio de R$ 10,3 mil que ficará desatualizado ano que vem.
A nova super câmera do iPhone 14 Pro/Pro Max, com 48 megapixels e vários recursos “de cinema”, é outro exemplo de funcionalidade aspiracional.
Por melhor que seja uma câmera de celular — e eu acredito que elas são as melhores para a maioria das pessoas —, é difícil imaginar um fotógrafo profissional ou um estúdio de cinema descartando suas enormes e caríssimas câmeras para usar um iPhone, que seja um iPhone “Pro”. Para quem a qualidade da câmera faz diferença, qualquer iPhone lançado nos últimos cinco anos faz fotos boas o bastante.
Não basta mais ostentar um iPhone, uma acusação dos ~haters feita desde sempre, lenga-lenga teorizada por Thorstein Veblen, que batizou esse comportamento de “consumo conspícuo” no final do século XIX, muito antes de Steve Jobs subir ao palco para anunciar o primeiro iPhone em 2007.
A verdadeira atualização do iPhone é sua transformação de sinal de status em (suposto) salva-vidas e em um prisma que reflete múltiplas aspirações do seu dono: alguém preocupado com a saúde, alguém aventureiro, uma pessoa sensível a ponto de perceber sutilezas estéticas insignificantes e valorizar a fotografia enquanto arte.
Até o ato da compra em si imbui um elemento aspiracional, de alguém que se importa com a emergência climática. Para cada novo produto que anuncia, a Apple joga na tela um monte de dados e promessas de “descarbonizar” sua linha de produção até 2030, um falácia que justifica atitudes gananciosas e hostis ao consumidor, como a remoção do carregador de parede da caixa do iPhone, e varre para debaixo do tapete práticas muito mais agressivas ao meio ambiente como dificultar a reutilização de componentes (outro terrorismo, esse comercial), descontinuar o suporte a produtos perfeitamente capazes e impedir o resgate de equipamentos descartados.
Aos olhos da Apple, o proprietário ideal de um Apple Watch Ultra e/ou de um iPhone 14 Pro é como aquele motorista que acha que precisa de uma picape ou SUV enorme, mesmo que só dirija de casa para o escritório, do escritório para casa e jamais pegue uma estrada de chão2. (Nota relacionada: o ranking dos carros mais vendidos nos Estados Unidos é dominado por picapes e SUVs enormes.)
Ao mesmo tempo em que justifica seu ciclo anual de lançamentos com maluquices complexas de uso extremamente limitado, a Apple tem que lidar com questões mais urgentes e mundanas, como a recessão global e a estagnação do mercado de celulares que ameaçam seu valor de mercado. Essas coisas estão intimamente relacionadas.
Os preços do iPhone subiram em todo lugar com exceção dos Estados Unidos. Culpa do dólar forte, diz a Apple. (No Brasil, não, mas porque já eram — sempre foram — obscenos por aqui.) O fim da versão “mini” e a chegada do iPhone 14 Plus aumentam o preço médio da linha e a concentra ainda mais na faixa de cima dos preços, que não conhece crise e sempre teve margens gordas, e que cresce na contramão do mercado, Apple na liderança.
Sinal mais forte do esforço da Apple em vender mais dos seus iPhones mais caros são as inéditas distinções entre as linhas Pro e “comum” do iPhone 14.
Pela primeira vez, os novos iPhones usam chips diferentes. O novo, A16 Bionic, foi reservado à linha Pro. O iPhone 14 “comum” reaproveitou o mesmo A15 Bionic de 2021, usado no iPhone 13. Para todos os efeitos, à exceção da tela enorme do modelo Plus, o iPhone 14 é quase indistinguível do iPhone 13.
Nada representa melhor esse esforço da Apple, porém, que a “Dynamic Island” (vídeo acima), o nome marqueteiro das animações interativas que brincam com o novo recorte na tela que abriga os sensores do Face ID e câmera frontal.
As mesmas notificações exibidas na “Dynamic Island” existem em todo iPhone em uso, mas só no iPhone 14 Pro e Pro Max elas são tão agradáveis, tão “criativas”, um show à parte.
Em vez de escondê-lo, a Apple esfrega o recorte na cara do usuário. É legal? Sim, muito. E genial também, um atestado do domínio sem paralelo que a Apple tem da arte de fazer celulares legais3.
Fabricantes Android passaram anos usando o mesmo tipo de recorte na tela para a câmera frontal. Tiveram tempo de sobra para bolar algo legal assim. O melhor que conseguiram? Uns papéis de parede estáticos do Galaxy S10 que incorporam o recorte. Que você não se lembre disso, não é por acaso.
Apesar de tudo, a Dynamic Island é — repito-me — um preciosismo que ajuda a justificar celulares que custam R$ 10 mil ou mais ante outros aparelhos, incluindo alguns da mesma empresa, que fazem as mesmas coisas e custam até 70% menos.
Os vários terrorismos do marketing da Apple, as funcionalidades dos novos produtos que servem a parcelas minúsculas dos consumidores tratadas como essenciais, até o sinal de fumaça, digo, de satélite disponível na raríssima eventualidade de você se perder no meio do nada, tudo isso oculta uma verdade inconveniente à indústria, à Apple: nossos celulares, esses que já temos, já em uso, são muito, mas muito bons.
- Considerando que seu iPhone 14 ainda tenha bateria e você esteja consciente, e que o “nada” seja um descampado sem obstáculos entre o celular e o céu nos Estados Unidos ou Canadá, únicos países onde o recurso estará disponível a princípio, e que o celular tenha sido comprado há menos de dois anos, prazo da cobertura gratuita oferecida pela Apple. ↩
- Não que isso seja algo exclusivo da Apple, é só que ela é quem melhor executa esse tipo de estratagema. Antes de ter suas ambições em telefonia móvel obliteradas por Donald Trump, a Huawei lançou um celular que “tirava fotos da Lua”, por exemplo. ↩
- Os ~haters que me desculpem, mas ninguém faz celular como a Apple hoje. ↩
Excelente matéria!
ótimo texto!
em resumo, aquele amigo chato que só falava de iPhone agora continua só falando de iPhone, porém numa versão Zack Snyder, mais sombria.
esse mesmo amigo chato vem falando que carro hoje só presta se for SUV com 14 airbags, pois do contrário qualquer batidinha e você estará sequelado
ao mesmo tempo ele reclama do preço, sendo que não aceita o argumento dos alto custos de desenvolver e homologar os 900 airbags e sistemas autonomos dos carros e da margem de lucro gigante das fabricantes
para quem trabalha ou se aventura em lugares ermos, jausa Spot (da GlobalStar). E para atividades esportivas, não tem melhor que Casio G-Shock GBD-H100 – o resto é brinquedo de rico.
Matéria muito boa. Parabéns! Resumiu bem a minha apatia com lançamentos atuais de telefones. Me lembra um vídeo no YouTube de um cara que analisa tecnologias que simplesmente funcionam e não tem muito pra onde evoluir mais. Às vezes penso que os telefones chegaram ou estão próximos desse patamar. No exemplo ele mostra um micro-ondas da Sharp, dos anos 90, e como ele era avançado comparado ao que se tem hoje (toca músicas personalizadas – e muito agradáveis – de finalização do preparo, a depender do que vc escolheu no menu).
Qual o nome do canal?
A Apple fala em sustentabilidade quando justifica a ausência do carregador, mas tem a coragem de alterar o tamanho dos dispositivos desse ano em relação aos do ano passado em 0,1mm, tornando assim as capinhas atuais uma peça exclusiva do modelo anterior. Num eventual upgrade de modelo, duvido que o sujeito que comprou o modelo usado acabe usando a capinha do antigo proprietário.
Com esse evento fiquei pensando “pq se dar ao trabalho de fazer todo esse show para mostrar exatamente mais do msm”
Gosto muito do meu iPhone, mas no final do dia é só um aparelho para zap e fazer pix.
Até as fotos/câmera que é um baita diferencial… no final do dia não é como se usasse o tempo todo (pior ainda esses novos recursos de “sobrevivência”). Aliás se vc não for uma pessoa de beleza realçada é melhor nem ter um aparelho tão bom assim, pois só vai destacar oq vc não gostaria de ver.
Sobre o smartwatch eu vi um comentário sensacional que me fez desencanar definitivamente deles. Era algo tipo “vc eh jovem, sem problemas de saúde. Quer esse negócio para q? A bateria dele vai degradar antes da sua saúde”
hoje em dia fazer upgrade de celular é quase perfumaria.
eu tenho um redmi note 7 de mais de 2 anos e apesar da bateria não durar mais o dia todo (como trabalho em escritório tenho acesso a tomada praticamente 24h por dia) ele continua me servindo muito bem, como não jogo, ele continua fazendo tudo desde o início com perfeição, quando chegar o momento dele, a única coisa que farei questão de ter que nele não tem é NFC, mas como disse, é perfumaria, continua sendo um bom celular, nunca me importei muito com fotos, então as deles me satisfazem (fora que quando vc envia por whatasapp ou instagram a qualidade se perde).
siiim
Ghedin! Adorei a análise. Você concretizou, de alguma forma, o mix de sentimentos que estava em mim. Aproveito para fazer uma pergunta: o que você sabe sobre o mercado dos eSIMs? É mais uma evolução forçada da Apple?
com certeza é forçado, e apesar de não ter produtos apple eu acho muito interessante, aliado ao padrão (forçado) da bateria não removível, vc poderia rastrear seu celular a qualquer momento, msm se levarem não tem como tirar a bateria e o chip, vc continua podendo encontrá-lo, ouso dizer que isso diminuiria muito o roubo no Brasil.
Diminuiria o roubo e aumentaria o sequestro, igual ao casos com PIX.
É uma evolução forçada e mais uma tática para manter os usuários presos ao ecossistema da empresa. Está trocando de iPhone? Ótimo; o iOS migrará automaticamente os dados do eSIM para o novo dispositivo, como mostrado na apresentação. Sou atual usuário de um iPhone 12, mas já transitei entre ambos sistemas inúmeras vezes, conforme minha(s) necessidade(s) e disponibilidade financeira. Agora, a mudança de iPhone para Android terá novamente mais um empecilho. Assim como preferem insistir no iMessage ao invés de adotarem o protocolo RCS, como o próprio @José comentou abaixo. A Apple adora criar justificativas para solucionar problemas inexistentes.
Valeu, Gustavo!
Sei pouco do eSIM, e não tenho opinião formada. Parece-me um avanço em vários sentidos — segurança e conveniência, por exemplo —, mas não consigo deixar de pensar, ainda que sem evidências, de que essa forçada de barra da indústria, em especial das operadoras, talvez tenha alguma pegadinha. Um possível problema é a troca temporária do número — por exemplo, em viagens internacionais.
Um detalhe importante, que acho que não ficou muito claro na apresentação, é que o iPhone 14 sem a bandeja para o SIM card físico é exclusivo para o mercado norte-americano. Os modelos vendidos no resto do mundo continuarão aceitando o SIM físico.
Sobre o eSIM, você pode cadastrar quantos “chips” virtuais quiser, alternando entre eles nas configurações e no Brasil a Vivo e Claro já oferecem o eSIM para todos os clientes, sem a necessidade de ser um plano específico ou segmento.
Que texto!!! Se 1/10 da imprensa escrevesse assim não estaríamos na lama. Parabéns!!
Legal mesmo foi a resposta de Tim Cook em relação a uma pergunta referente ao padrão RCS que o Google está tentando emplacar.
“Compre um iPhone para a sua mãe”.
Claro, é uma briguinha estadunidense. Em outros países WhatsApp ou Telegram dominam.
Excelente texto, bjs Ghedin
👏
Eu tô no ecossistema. Não cogito sair. Mas pra mim, cada vez mais é apenas um dispositivo. Não me entusiasmo mais como me entusiasmava no passado. Tanto que troquei de relógio uma semana antes dos lançamentos, para aproveitar um desconto de 15% no preço.
E senti o mesmo no Keynote. Foco tão forçado em situações raras, sei lá. Talvez por conta da pandemia ainda.
E também concordo com o relógio. Me lembra quando eu queria começar a correr há uns 5 anos atrás e comprei tênis e tudo mais. Nunca corri nem 200m. Hoje penso em talvez voltar a tentar, mas só vou comprar coisas quando realmente estiver correndo. Até lá, o que eu tenho tá mais que bom.
Ótima discussão, pessoal de tecnologia gosta de reduzir o objetivo do marketing a questão de ostentação financeira, que é completa exceção no mercado de tecnologia. Não é o único anseio humano ser o mais rico da sala, nem é o que vendem as marcas mais famosas tipo Nike ou NuBank.
Aqueles smartphones bregas da VERTU nunca deram certo. A própria Apple falhou nessa estratégia, o Apple Watch Edition que começou mirando nos relógios de luxo e depois em algo mais refinado, finalmente saiu do mercado na última semana.
Eu acho tão óbvio que, entre os entusiastas de open-source, há um forte apelo para se destacar por ser mais capaz. Não a toa, há piadas sobre usuários de Arch e Vim destacarem suas preferências sempre que possível. O status não é de poder aquisitivo, mas o “estilo de vida” como dizem.
Poderia seguir com outros exemplos de nicho, mas importante é pensar que há muitas outras aspirações que governam nossas decisões. Não são apenas pessoas vazias e superficiais, que o marketing tenta pegar.
Como usuário de Arch Linux e de Vim, acho que você acertou na mosca na sua análise. Faz total sentido.
BTW
Boa inspiração na matéria da Fast Company.
Li um tanto da repercussão dos anúncios da Apple — é o básico para poder opinar —, mas essa, especificamente, eu não li (não acompanho a FastCompany).
Como sempre, assisti o evento, porque a produção da Apple me encanta, e também notei isso que você falou, Ghedin.
Os principais argumentos de venda do iPhone e do Apple Watch foram na linha de “compre para não morrer sozinho sofrendo”.
Pouca inovação de software e hardware. A tal da Dynamic Island é interessante por tornar uma limitação do design em uma solução, mas também é algo paliativo. Seria melhor que não houvesse um recorte na tela para esses sensores.
Enquanto isso, continuo com meu iPhone X firme e forte. Comprado em 2017, só pensarei em trocá-lo quando o iPhone 15 for lançado em setembro do ano que vem.
Ótimo texto.
O Gedhi é um dos poucos que ama os produtos Apple e adora criticá-la.
Ué? Rapaz, se as pessoas gostam de algo, por quê não ter o direito de criticar? :p