Corujas não são exatamente exemplos de força. Uma coruja pesa, em média, dois quilos, sendo que as penas que cobrem seu corpo correspondem a uma parte relevante do peso. Músculos? Quase nada. Como qualquer bicho que não as orcas, as corujas têm predadores naturais. Linces, cobras, águias e falcões adoram um galetinho de coruja nas refeições. O que faz a pobre coruja para se proteger? Existem algumas técnicas, mas a estratégia tradicional de defesa das corujas passa por projetar uma ilusão. Tome o exemplo do corujão-orelhudo, conhecido no Brasil também como jacurutu. Quando um predador ou uma ameaça se aproxima, a jacurutu adota uma postura específica — baixa a cabeça, encolhe o corpo e abre as asas para cima. Assim, a coruja tenta passar a impressão de que é muito maior do que efetivamente é. Caso o predador não se sinta ameaçado, a jacurutu emite sons agudos e, por fim, dá um salto para frente com a intenção de agredir a ameaça com as garras afiadas. As garras afiadas são o que lhe resta, já que, atrás da plumagem, não existe nada além de ar.
Trata-se de um truque que a coruja usa para enganar o predador. O truque só funciona quando o predador assume que as penas escondem músculos. Na verdade, atrás delas só existe o vazio. Humanos replicam comportamentos semelhantes aos da jacurutu em diferentes situações de vida. Sabe aquela história que você já ouviu de alguém que fez ou evitou um assalto por ter colocado a mão dentro da calça ou da blusa para fingir que estava armado? Mais ou menos a mesma coisa. Quem faz espera que seu alvo se convença de que por trás das penas exista músculo, quando, na verdade, é só ar mesmo.
Nos debates políticos nas redes sociais, há um grupo que, tal qual a jacurutu, finge um tamanho maior do que tem com um intuito não tão nobre como o da coruja — que é evitar virar ensopado de linces, cobras e falcões. Você, mais atento, já deve ter concluído que falamos da base de apoio do presidente Jair Bolsonaro (PL).
Em 2022, o bolsonarismo aparenta um tamanho menor que em 2018. Aliás, vamos esclarecer uma coisa já: sabe quando um candidato diz que tem dezenas de milhões de votos? É balela. Voto a gente tem na apuração, não necessariamente tempos depois. Quanto mais longe do fechamento das urnas, maior a probabilidade de que aquele número não reflita mais a realidade. É algo que Bolsonaro insiste em repetir com frequência.
Compilando todas as pesquisas de intenção de votos realizadas por institutos sérios, Bolsonaro aparece, no máximo, na faixa dos 33% das intenções de votos para outubro. Aqui, estou usando três agregadores de pesquisas eleitorais: Uol, Poder360 e Estadão. Cada um deles considera um conjunto específico de pesquisas eleitorais, com as principais, como Datafolha, Quaest, DataPoder360, IPEC e IPESPE consideradas.
Em todos os agregadores, o resultado é o mesmo: a base de Bolsonaro cresceu com a desistência do ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro, mas parece ter se estabilizado em cerca de um terço dos eleitores brasileiros.
Esse terço de eleitores brasileiros é bastante ativo e coeso nas redes sociais. Análises feitas acerca da mobilização e do consumo de conteúdo multimídia por esse grupo mostram um grau de coesão e compulsão para produzir, repassar e consumir conteúdo político — sempre apoiando Bolsonaro e atacando seus rivais — que nenhum outro movimento político tem no Brasil. Claro, cada plataforma tem suas particularidades — a mobilização no Twitter se dá de forma diferente à registrada no YouTube, no Instagram e afins.
Quando Bolsonaro fala sobre “o povo”, “o povo está insatisfeito”, “o povo não aguenta mais”, “o povo aprova o governo”, ele não fala sobre os 220 milhões de brasileiros, mas sim desse um terço. A coesão e a enorme mobilização online deste grupo é a coruja levantando suas asinhas para fingir que é maior do que de fato é.
O sexto episódio da quarta temporada do Tecnocracia, você já percebeu, vai falar de política e, especificamente, do evento mais importante do atual período democrático: as eleições de outubro e como as campanhas digitais deverão se desenrolar nelas. O Tecnocracia tem uma marca de olhar para trás com distância para recuperar e analisar grandes movimentos sociais e como a tecnologia desenvolveu um papel relevante — ou não — dentro deles. Nesta quinzena, a gente vai experimentar um novo modelo: vamos continuar olhando para trás, sim, mas também vamos olhar para o presente para cogitar como será o futuro. Eu já disse isso publicamente, seja aqui no Tecnocracia, em entrevistas ou no Twitter, mas não custa frisar: não existe tarefa mais importante para a nossa geração do que salvar a democracia da campanha coordenada do atual presidente. A tecnologia vai ter — já tem — um papel fundamental nesta tarefa. É para ela que a gente está olhando.
Toda quinzena (às vezes mais), o Tecnocracia te lembra que tecnologia não é cobrir evento da Apple e ficar maravilhado com tecladinho e notebookzinho, mas que as redes sociais estão no centro de um acontecimento que vai determinar os caminhos da democracia brasileira. Eu sou o Guilherme Felitti e, se você não gosta da posição firme que o podcast tem, tchau. Porta da rua serventia da casa, como diria minha avó. Se você gostou e quer mais, o Tecnocracia está na campanha de financiamento coletivo do Manual do Usuário. Se interessou, apoie. Hoje não tem piadinha para te convencer a assinar. O assunto é sério.
Eu quero guiar esse episódio por algumas perguntas fundamentais. Comecemos pela primeira: quão efetivas para influenciar uma disputa eleitoral são as fake news? Ou: campanhas coordenadas de mentiras têm poder real para convencer eleitores indecisos a escolher um lado? A academia ainda não tem um consenso fechado sobre o tamanho do impacto. Existem pesquisas que indicam um possível efeito.
Estudo dos pesquisadores Richard Gunther, Paul Beck e Erik Nisbet, da Universidade Estadual de Ohio, ouviu um grupo de eleitores norte-americanos que tinha votado em Barack Obama em 2012 e se preparava para as eleições de 2016 entre Hillary Clinton e Donald Trump. Junto à intenção de votos, os pesquisadores apresentaram três teorias da conspiração trumpistas. “Entre aqueles que não acreditaram em nenhuma das histórias falsas, 89% votaram em Hillary Clinton em 2016. Entre os que acreditaram em pelo menos uma notícia falsa, o nível de suporte caiu para 61%. Entre os que acreditavam nas três notícias falsas, apenas 17% votaram em Clinton”. Os próprios pesquisadores são cuidadosos para considerar as limitações do estudo: a crença nas notícias falsas talvez seja resultado da antipatia do eleitor com Clinton, e não o oposto, o que resultaria em um fenômeno “puramente epifenomenal”.
Por outro lado, existem estudos sugerindo que o impacto eleitoral das campanhas coordenadas de notícias falsas é limitado. Um publicado na revista Science em janeiro de 2019 por cinco pesquisadores ligados às universidades Northeastern e Buffalo mostrou que, nas eleições norte-americanas de 2016 no Twitter, “notícias falsas corresponderam a quase 6% de todo o consumo de notícias, mas foi altamente concentrado — apenas 1% dos usuários foram expostos a 80% das notícias falsas e 0,1% dos usuários eram responsáveis por compartilhar 80% delas. Interessantemente, notícias falsas se concentravam mais em eleitores conservadores”. É outra pesquisa a ser considerada junto às suas limitações: o Twitter não representa todo o universo de consumo de notícias e seria interessante entender se esse 1% alvo das campanhas estava entre os indecisos.
Para ajudar a pensarmos na efetividade, deixa eu retomar um assunto e, então, refazer aquela primeira pergunta para você matutar um pouco. O Tecnocracia #35, coerentemente intitulado “O manual de eleição digital para o fascista moderno chegar ao poder”, explica em detalhes como a família Bolsonaro, principalmente o vereador carioca Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), montou uma máquina de desinformação para a campanha presidencial do pai ao entender que milhões de brasileiros passavam horas e horas em grupos do WhatsApp e páginas de memes no Facebook.
Enquanto a campanha de Bolsonaro se aproximava de donos de páginas populares de memes e organizava centenas de grupos de WhatsApp, a campanha do rival Fernando Haddad (PT), substituindo Lula, tirado da disputa por estar preso, promovia guerras internas lideradas por marqueteiros tradicionais que apostavam que, se a propaganda política na TV deu certo até hoje, vai continuar dando ad infinitum. Houve uma investida tecnológica para publicar o plano de governo no blockchain1.
Note o contraste: de um lado, aplicativos em +95% dos celulares do Brasil. No outro, uma tecnologia que nem mesmo gente familiarizada com o setor sabe direito como acessar ou para que serve.
A eleição presidencial de 2018 derrubou alguns mitos das campanhas eleitorais. Talvez o principal deles seja que é impossível se eleger para cargos majoritários — prefeito, governador e, principalmente, presidente — sem ter minutos e minutos de exposição na TV. Bolsonaro tinha 8 segundos e arregimentou 49 milhões de votos no primeiro turno. Geraldo Alckmin tinha 5 minutos de TV, graças às coligações que o seu partido na época, o PSDB, fechou, e não chegou a pouco mais de um décimo disso.
Explicação feita, deixa eu refazer a primeira pergunta de forma menos etérea, usando um exemplo próximo de todos nós. Se Haddad tivesse montado a mesma máquina bolsonarista com centenas de grupos de WhatsApp e se aproximado de páginas populares de memes, ele teria vencido a campanha? É bom esclarecer que estou separando aqui a tubulação da água que corre dentro: dá para montar uma máquina assim sem inundar grupos familiares com mamadeira de piroca. E aí, pensa um pouquinho: sem blockchain, mas com memes e WhatsApp, o Haddad levaria?
Estou fortemente convencido que não. Tecnologia canaliza, mas não necessariamente cria as condições. Não é segredo para absolutamente ninguém que Jair Bolsonaro foi quem soube surfar melhor a onda antipetista burilada com o desenrolar da Lava-Jato. Parece uma outra vida, mas, até Bolsonaro se consolidar, havia dúvidas sobre as candidaturas de outsiders (o já citado Moro era um deles) e é bom lembrar que Lula aparecia à frente antes de ser preso.
Nessa metáfora de Poseidon, a máquina de comunicação baseada em grupos de WhatsApp e páginas de memes serviram para escoar teorias tão delirantes quanto enraivecidas sobre mamadeiras de pirocas e afins. Essas teorias ressoaram porque já havia uma propensão do público de assimilá-las. O volume atacadista de conteúdo político — de recortes de notícias sérias a delírios que qualquer pessoa com o mínimo bom senso saberia ser falso (mamadeira de piroca, tô olhando para você) — entregue sempre diretamente a um público ávido, ajudou a concentrar e catalisar a raiva difusa do público contra instituições e arranjos políticos vigentes desde a redemocratização. O público queria algo novo e a máquina de comunicação foi a prancha na qual Bolsonaro surfou, sem, no entanto, criar a onda.
Em 2018, o rio estava correndo em uma direção — a mesma direção na qual Bolsonaro e sua máquina de comunicação estavam indo. Naquele ano, a vontade política popular se aliou à estratégia de uso intenso das redes sociais do bolsonarismo.
Ao mesmo tempo em que quebrou algumas máximas da campanha eleitoral, 2018 também definiu alguns cenários que podem não se repetir em 2022. Após a máxima de que sem TV não se ganha eleição ruiu, parece ter havido uma sobre correção (Luciana Gimenez chamaria de “overcorrect”) que aproximou a interação online da intenção de voto. Número de curtidas, visualizações e comentários poderiam funcionar como um proxy dos desejos populares?
Em 2022, existem indícios fortes de que talvez essa aliança não se repetirá. O melhor exemplo disso foi o lançamento da chapa do ex-presidente Lula com o ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSB) no YouTube. Vários canais alinhados ao Partido dos Trabalhadores, fossem eles de políticos ou não, transmitiram o evento ao vivo, mas o vídeo mais visto foi o do canal do PT: dias depois, eram 180 mil visualizações acumuladas. Enquanto gravo isso, mais de um mês depois, são 193 mil visualizações. Para os padrões de engajamento da oposição no YouTube, é ok. Já para os padrões do bolsonarismo do YouTube, é pouco. Bem pouco. Na mesma semana do lançamento da chapa, as 180 mil visualizações não colocariam o vídeo no top 50 dos mais populares da extrema-direita. Para você ter uma ideia: o quinquagésimo vídeo de extrema-direita mais visto na semana entre os dias 2 e 8 de maio (lembre que a candidatura foi lançada no dia 7, um sábado) foi um publicado pelo canal Os Pingos nos Is que, seguindo a regra do mestre Millôr, ficará sem título. Acumulou 292 mil visualizações na semana — hoje está em 363 mil.
O que nos leva à afirmação: historicamente, movimentos políticos ligados à esquerda não têm o interesse que movimentos políticos ligados à direita têm em adotar novas ferramentas para entender como aplicá-las em campanhas políticas ou na atração de correligionários. É um assunto em que pesquisadores bastante talentosos estão debruçados agora para tentar entender.
Não existe uma resposta simples e não é um fenômeno brasileiro: no seminal Máquina do ódio, já citado por aqui e fundamental para entender um lado sórdido e perverso dessa máquina de comunicação bolsonarista, a jornalista Patrícia Campos Mello nos lembra que, na campanha à Casa Branca de 2018, o Facebook ofereceu aos então candidatos Donald Trump e Hillary Clinton a opção de ter um funcionário da rede social integrado à equipe. Trump pegou, Hillary não2.

Também não é de hoje: uma das primeiras pautas que eu apurei na minha carreira de jornalista foi o Second Life. Na primeira onda de hype ao redor do metaverso, lá em 2005, 2006, tinha-se a certeza absoluta de que era inevitável essa transição para uma rede social visual com os gráficos do Mega Drive3. Empresas, universidades e partidos políticos embarcaram no hype e gastaram uma bela grana pagando designers de metaverso para construírem sedes virtuais na chamada Ilha Brasil. Em uma das minhas apurações no Second Life, dois partidos construíram prédios no Second Life: o Democratas (o antigo PFL recém-renomeado, atual União Brasil após se unir com o PSL) e o PSDB. Qualquer pessoa com bom senso classificaria ambos como direita ou centro-direita. A página em que o Democratas anunciava sua entrada no Second Life, já fora do ar, segue disponível no Web Archive.
Feita a contextualização, voltemos. A consequência desse interesse maior de movimentos ligados à direita — e, principalmente, à extrema-direita — no uso de ferramentas digitais para uso político se reflete hoje no tamanho das bases de seguidores dos principais influenciadores bolsonaristas. Lula e o outro candidato que registra mais intenções de voto que a margem de erro, Ciro Gomes (PDT), são nanicos digitais quando comparados a Bolsonaro. Uma comparação rápida no YouTube: o canal de Lula tem 483 mil seguidores. O de Ciro, 456 mil seguidores. O de Bolsonaro, quase 3,7 milhões. Em qualquer outra rede social, a diferença segue escala semelhante.
Com essa tendência em mente, vamos à segunda pergunta, já resvalada há alguns momentos: o quanto isso importa em uma eleição? Quão real é a impressão que 2018 deixou em alguns de que ter milhões de seguidores é suficiente para eleger alguém? O quanto o alto engajamento online se traduz em votos?
As respostas definitivas só teremos em outubro, mas já temos alguns fortes indícios de que, em 2022, o rio parece estar correndo em direção diferente. Voltemos aos agregadores de pesquisas. Ao mesmo tempo em que mostram Bolsonaro com cerca de um terço do eleitorado há mais de um ano, as mesmas pesquisas mostram Lula solidificado em mais de 40% das intenções de votos. Pelo Estadão, é 46%. Pelo Poder360, é 43%. Pelo Uol, é 44%. Todas as pesquisas sugerem que, em julho de 2021, o ex-presidente arrancou nas intenções de voto e parou lá em cima. Estamos chegando a um ano do movimento e, desde então, não houve qualquer tipo de ataque eleitoral que tenha tirado Lula da faixa dos 40%. Mais que isso: Lula e Bolsonaro começaram 2022, cada um deles, com um cheque para descontar. Bolsonaro descontou o seu com a desistência da candidatura de Moro e atingiu os cerca de 33%. Lula está acima dos 40% sem descontar o seu — as pesquisas indicam que, se houver segundo turno, ainda que Ciro resolva não escolher um lado (ele já deu sinais tímidos de preferir Lula a Bolsonaro), seu eleitor escolherá majoritariamente o ex-presidente. Segundo o Datafolha, 37% dos eleitores de Ciro têm Lula como segunda opção, contra 10% escolhendo Bolsonaro.
Essa liderança de Lula foi alcançada e mantida com aquela diferença enorme de bases de seguidores, visualizações de vídeos, curtidas, comentários e afins. Nada mudou. O fato de não ter uma multidão assistindo à transmissão ao vivo do lançamento da chapa não significa, necessariamente, que, na urna, essas pessoas deixarão de votar em Lula por acreditarem nas propostas do candidato ou simplesmente como a forma mais efetiva de tirar Bolsonaro do poder.
A gente já teve um exemplo recente de que nem toda vontade política se traduz em mobilização online. Na corrida pela Prefeitura de São Paulo em 2020, a campanha de mobilização de Guilherme Boulos (PSOL-SP) foi bastante elogiada. Sem ter uma base própria grande, Boulos foi obrigado a usar a audiência de canais maiores, nem sempre simpáticos ao candidato. Após encarar “entrevistas” em canais da Jovem Pan, Boulos passou a se aproximar de canais enormes que eram simpáticos ou neutros frente à sua candidatura. A entrevista que deu ao Flow em 2020 (quando o Flow era o maior podcast do Brasil, não tinha sido atropelado pelo Podpah e nem pelas ideias criminosas de um dos seus fundadores) e jogar Among Us com Felipe Neto levou sua mensagem para um público jovem e que só tinha contato com ele a partir de memes negativos. Eu fiz um fio longo no Twitter sobre isso com dados em novembro de 2020.
Ainda assim, quem levou foi Bruno Covas (PSDB) sem ter uma estratégia digital que enchesse os olhos.
Vale um parêntese aqui. As pesquisas subestimam Bolsonaro? Talvez um pouco. O pesquisador e professor da Fundação Getúlio Vargas, João Villaverde, nos lembra corretamente que todas as eleições majoritárias no Brasil desde 2010 experimentaram uma onda anti-petista na reta final da campanha. É certo que ainda existe um contingente de brasileiros que, constrangido em admitir o voto publicamente, encontrará na privacidade da cabine de votação o conforto para escolher Bolsonaro. Essa fatia de eleitores envergonhados é suficiente para inverter a tendência consolidada de Lula acima dos 40%? Improvável, mas pode garantir que tenhamos um segundo turno.
“Guilherme, isso aqui é um podcast sobre tecnologia ou sobre política”? Os dois. Mas agora, bonito e bonita, a gente volta a falar de aves. Porque a coruja começou a levantar as asas.
A coruja levanta suas asas
O sistemático e crescente ataque de Bolsonaro ao sistema eleitoral brasileiro é só uma parte da estratégia. A tentativa de colocar as urnas eletrônicas sob suspeição não está completa se não oferecer uma contraprova, um cenário (independe se real ou forjado) para indicar um resquício, um fragmento da realidade que a inexistente fraude tenta acobertar. É como se dissesse: “mas é claro que houve fraude, veja esses exemplos de como sou popular. É impossível perder dada tamanha popularidade”. É um discurso repetido.
Quando quer projetar popularidade, o bolsonarismo usa dois formatos. São as duas asas da coruja. A primeira asa que a coruja levanta é a maior taxa de engajamentos e visualizações da extrema-direita nas redes sociais. Mas só essa falácia, passível de ser forjada por automações em comunidades online, é insuficiente. É preciso algo que “conecte” a interação online com o mundo real. É aí que a coruja levanta sua segunda asa para tentar completar o logro: são os eventos em que Bolsonaro é “recepcionado” fervorosamente por correligionários. Esse último é algo que o bolsonarismo chama de “Datapovo”.
Uma corruptela de Datafolha, Datapovo é uma expressão dentro do discurso bolsonarista que significa a aprovação do povo. Quer dizer, não do povo real. Aí a asa da coruja está levantada. É daquele um terço do público que pretende votar em Bolsonaro em outubro. Bolsonaro engana propositadamente ao dizer que “o povo falou”, quando na verdade quem falou foi uma fatia menor de um terço da população.
Como o Datapovo se manifesta? Dá para você verificar enquanto escuta o podcast: entre no YouTube e digite “Datapovo”. Na lista de resultados, uma maioria de vídeos atrelados à extrema-direita alegando que os resultados das pesquisas eleitorais estão errados, já que Bolsonaro é recepcionado com festa e fervor sempre que chega a alguma cidade. Cercado pela claque, sempre sob ângulos que sugerem uma participação massiva, Bolsonaro desfila de moto, de carro, no trio elétrico. As imagens que sugerem as maiores multidões são recortadas e transmitidas por esses canais, inclusive pelos filhos do presidente, para passar a imagem de que Bolsonaro é adorado pelo povo. Clipes das motociatas são reempacotados para sugerir uma aprovação popular enorme. Já diferentes pesquisas eleitorais indicam que a reprovação de Bolsonaro é quase o dobro da sua aprovação — pela Quaest, é 47% a 26% e, pelo Datafolha, 48% a 25%.
Ao mesmo tempo em que vende a ideia de um presidente adorado por onde passa, o Datapovo ataca Lula com o contrário: enquanto Bolsonaro é “amado”, Lula não pode sair para andar na rua. No começo de maio, o carro do ex-presidente foi cercado por militantes bolsonaristas em Campinas (SP). O vídeo foi circulado pesadamente nas comunidades bolsonaristas como “prova” endossando a teoria do Datapovo. Lula não se feriu. O episódio é um desdobramento preocupante por aproximar ainda mais a violência política de uma campanha já absurdamente quente. Debate político se faz 1) com respeito ao papel das instituições e 2) tirando ameaças físicas da equação. Uma campanha feita sob a sombra de perigos físicos já está ferindo frontalmente os princípios democráticos.
A teoria do Datapovo é martelada incessantemente pelos bolsonaristas desde, pelo menos, janeiro de 2022. Análise feita pela Novelo Data, a minha empresa de análise de dados, encontrou os três principais pilares nos quais o discurso contra pesquisas eleitorais do bolsonarismo se apóiam. A pesquisa foi publicada pelo jornal Folha de S.Paulo no começo de maio (link no roteiro). Essa tentativa de vender Bolsonaro como amado e Lula odiado pelo Datapovo forma o segundo pilar da estratégia coordenada pela extrema-direita para atacar e desacreditar pesquisas eleitorais e institutos de pesquisa. Existem outros dois.
O primeiro pilar é atacar diretamente a credibilidade dos institutos responsáveis por pesquisas que não corroboram essa ideia de Bolsonaro imensamente popular. Para cada instituto, o bolsonarismo usa ataques personalizados. Ao falar sobre o Datafolha, as acusações são duas: o fato de fazer parte do mesmo grupo da Folha de S.Paulo, jornal visto como “esquerdista” pelo bolsonarismo, e um suposto erro da pesquisa em 2018 dizendo que Bolsonaro perderia o segundo turno contra Haddad. Pesquisas são retratos de momento. Desde 2019, o movimento vem circulando resultados do DataFolha de agosto e setembro de 2018 projetando a derrota de Bolsonaro. Propositadamente, porém, o bolsonarismo deixa de lado pesquisas próximas ao pleito indicando a virada. A capa da Folha de S.Paulo no dia do segundo turno é categórica: na última pesquisa, Bolsonaro tem 55% e Haddad, 45%. Com as urnas abertas, foi exatamente essa proporção apurada.
Os resultados da Quaest são questionados pelo fato de o banco Genial, que financia a pesquisa, já ter sido citado em delação premiada quando se chamava Brasil Plural. Contra a XP, o bolsonarismo segue duas linhas: um encontro entre o fundador da corretora, Guilherme Benchimol, com Lula em abril, e a declaração de voto no ex-presidente feita por Neca Setúbal, herdeira do Itaú, que investiu na XP, são provas irrefutáveis no bolsonarismo de que a corretora é “esquerdista”.
Você já entendeu: se a pesquisa não mostra Bolsonaro ganhando com folga, perfis bolsonaristas de grande alcance, principalmente no YouTube, vão martelar teorias para atacar a idoneidade dos institutos e convencer a base de que eles não representam a realidade. Que realidade? A que eles mesmos tentam projetar de Bolsonaro amado e Lula odiado pelo povo — o primeiro pilar citado há pouco, do Datapovo.
O terceiro e último pilar envolve também essa construção de realidade benéfica ao movimento político, dessa vez na forma de outras manifestações do público, sempre apoiando Bolsonaro. Aqui vale de tudo: desde enquetes feitas por sites ou canais de YouTube a votações promovidas em eventos ao vivo ou até “pesquisas” feitas por youtubers em calçadões pelo Brasil.
O bolsonarismo foi o primeiro movimento político no Brasil a entender que, se bem trabalhadas, as redes sociais ajudam a criar realidades paralelas lastreadas ou em aspectos da vida real catalisados ou em delírios puros. A campanha eleitoral de 2018, detalhada no Tecnocracia #35, pertence à categoria de realidade paralela lastreada em aspectos catalisados da realidade. A campanha coordenada para atacar as urnas eletrônicas e colocar o sistema eleitoral brasileiro sob suspeição, instrumentalizada a partir da CPI da Pandemia e detalhada no Tecnocracia #50, pertence à categoria de realidade paralela baseada em um delírio. Sempre bom repetir: em mais de 20 anos de urnas eletrônicas, nunca houve uma fraude comprovada. Durante as décadas de voto de papel, foram incontáveis.
A coruja bolsonarista sempre levantou as suas asas para dar a delírios um ar de seriedade, organicidade e arrebatamento. Percebe-se a efetividade do processo naquele um terço da população quando se entende de onde vem as informações consumidas. Pesquisa da FSB/BTG ouviu como os eleitores que irão às urnas em outubro se informam e criou uma tabela cruzando candidatos e formatos. A maior fatia dos que se informam por redes sociais declarou voto em Bolsonaro — 30%, contra 13% de Lula e 11% de Ciro. Não é aleatório. O hábito vem sendo construído há anos pelo movimento.
Já é o que está acontecendo agora tendo outubro em vista, ainda que a campanha eleitoral não tenha começado oficialmente (o calendário oficial do TSE só permite a partir de 16 de agosto). A coruja só levanta suas asinhas graças ao papel fundamental que a tecnologia (aqui entra também a postura omissa das plataformas frente à desobediência explícita de suas próprias regras).
Para voltar na primeira frase do episódio, corujas não são exemplos de força — o levantar de asas, um movimento de defesa, tenta convencer o predador de que existem músculos quando só existem penas. A coruja da nossa metáfora, porém, não precisa de músculos próprios. Ela trouxe alguns alheios para sua estratégia de ataque. Uma coisa é convencer seu primo desempregado que dirige um Palio 98 em Lorena (SP) de que a urna eletrônica é fraudulenta. Outra, completamente diferente e realmente temerária, é convencer as Forças Armadas.
Foto do topo: Sue Thomas/Unsplash.
- Após a publicação do episódio 35, soube que o projeto do blockchain foi uma iniciativa solitária de alguém da campanha tentando fazer alguma coisa tecnológica diferente frente à estratégia anos 90 adotada pela chefia. ↩
- Eu não estou falando que Hillary Clinton e os Democratas são alinhados à esquerda. No sistema bipartidário dos Estados Unidos, você tem um partido crescentemente tomado pela extrema-direita, os Republicanos, e um mais de centro. Chamar os Democratas de esquerdistas é delírio de quem só consome coisa pelo WhatsApp. ↩
- Jovens, Mega Drive era um console da Sega lançado em 1988 cujos gráficos eram surpreendentes na época, mas hoje parecem obviamente datados. ↩
Boa análise! Mas preciso discordar em um ponto: os gráficos do Second Life estão muito mais para PlayStation 2 do que Mega drive