Foi-se o tempo em que unicórnio era apenas o ser mitológico, aquele cavalo com chifre e poderes mágicos dos livros de fantasia. Desde 2013, o termo se desdobra para designar as startups avaliadas em mais de US$ 1 bilhão. O clube dos unicórnios vem crescendo e, a partir de 2018, passou a contar com membros brasileiros. O que nos leva a questionar a matemática por trás dos “valuations”, ou o valor de mercado de uma empresa. Quais contas precisam ser feitas para que uma startup se autodeclare unicórnio?
Notícias de novos unicórnios são celebradas pelas próprias startups, obviamente, mas também por todo o mercado. Elas sinalizariam o amadurecimento do ecossistema de inovação e investimentos, comprovando o potencial de negócios gestados e desenvolvidos localmente. Com mais capital correndo, é possível deslanchar projetos de expansão capazes de — todos esperam — trazerem retornos vultuosos no futuro e gerar novas oportunidades em torno dessas grandes startups.
Entender a matemática dos valuations não é nada simples, porém. “É mais uma arte do que uma ciência exata”, explica Marcela Yamamoto, sócia da prática de valuation and modeling na consultoria Deloitte. Não basta, por exemplo, ater-se ao valor levantado junto aos investidores. O Nubank tornou-se unicórnio em março de 2018, após levantar US$ 150 milhões em uma rodada liderada pelo fundo DST Global. Já o Gympass só entrou para o clube dos bilionários quando levantou o dobro, US$ 300 milhões, em uma rodada liderada pelo SoftBank e a General Atlantic, em junho de 2019. Desconsideramos, nesses casos, rodadas anteriores de captação.
“Independentemente de ser uma empresa fechada ou uma de capital aberto, o potencial de valor do negócio está muito ligado ao que o investidor imagina que essa empresa tenha de potencial de geração de caixa”, continua Marcela. Essa distinção é importante. Para Rodrigo de Alvarenga, CEO da HAG.Ventures, o valor de qualquer empresa resulta de duas assimetrias: a de informação, muito presente em startups; e a de expectativas, que, mesmo com o auxílio de indicadores e informações contábeis, quase sempre tem uma forte carga de subjetividade — algo como o “ânimo” dos investidores.
Esqueça o caixa — por ora
Uma startup é, em essência, uma empresa de capital fechado que desafia modelos de negócio estabelecidos com ideias ainda não provadas na prática. Por isso, nesse estágio gerar receita não é o mais importante. Elas precisam, antes, viabilizar a ideia disruptiva que justifica sua existência e que, prometem seus fundadores, é capaz de virar o mercado que ataca de cabeça para baixo. Quando (e se) isso ocorrer, em tese a startup terá todas as cartas na manga para, aí sim, fazer dinheiro. De preferência, muito dinheiro.
Para manter as luzes e a internet ligadas e a folha de pagamento dos funcionários sem atrasos, entram em cena os investidores: fundos que injetam muito capital na startup — dinheiro captado de empresas, famílias e indivíduos ricos —, em diferentes estágios do seu desenvolvimento, em troca de uma fatia dela. É como se elas virassem sócias, mas com algumas garantias e um quê de aposta: se a ideia se provar realmente inovadora e chacoalhar o mercado, lá na frente esses investidores colherão retornos enormes na saída (ou “exit”, como muitos se referem no meio), que pode ocorrer quando a startup é vendida a uma empresa maior ou com a abertura do seu capital na bolsa.
A principal diferença entre empresas de capital fechado, como é o caso das startups, e as listadas na bolsa, é que essas últimas são necessariamente mais transparentes e, regra geral, trabalham com modelos de negócio já consolidados. Elas são obrigadas a liberar informações contábeis a cada trimestre, cumprem uma série de requisitos de compliance e têm uma estrutura bem definida de governança. Outra distinção é que suas ações são negociadas publicamente, então mais gente — todos os investidores que vendem e compram seus papéis nos pregões — determina o seu valor de mercado. Quando se diz que a Apple ou a Microsoft “valem mais de US$ 1 trilhão”, não significa que elas têm, faturam ou lucram esse valor, mas sim que o mercado — os investidores — chegou a um consenso de que a expectativa de geração de valor da Apple ou da Microsoft vale tudo isso.
“É óbvio que se uma empresa tem capital aberto isso é muito mais fácil de ver porque as informações são públicas”, resume Marcela sobre as listadas da bolsa. “Então existe um nível de informação que permite que mais pessoas analisem e que você tenha conhecimento de fato daquilo que está acontecendo”.
Já na empresa de capital fechado, “não é do interesse do dono que [a informação] seja pública”, diz ela. Auditorias internas e dados da operação só são compartilhados com fundos interessados em realizar aportes, em investir na startup para mantê-la operando enquanto tenta ganhar mercado, vencer rivais e/ou provar seu modelo de negócio. É com base nessas informações e no consenso das partes — fundadores e investidores — que se chega ao valuation, ou seja, o valor é determinado a portas fechadas e de maneira opaca. Compra-se o valuation pelo seu valor de face porque as incertezas são tantas que, exceto quando há fraude, o que se precifica ali é mais potencial e expectativa do que desempenho ou qualquer outro parâmetro mais objetivo.
Nada impede que uma startup divulgue informações internas, como faz o Nubank que, vez ou outra, informa o mercado sobre seu desempenho financeiro — até hoje, o Nubank nunca deu lucro. É uma discricionariedade e uma maneira de preparar terreno para uma abertura de capital ou, no caso de startups menores, se insinuar para possíveis compradores.
Startups têm como uma de suas características primordiais a incerteza, explica Alano França, sócio líder da prática de disruptive M&A da Deloitte: “Nesse mercado de incertezas, tem uma série de variáveis que por mais que empreendedor e quem está fazendo valuation desafiem esse plano de negócios, não necessariamente consegue prever todas as incertezas da implementação”.
Empresas de capital aberto também estão sujeitas a incertezas — as variações no preço das ações ao longo do tempo é a representação financeira delas. A diferença é que, por serem mais maduras — geralmente com um modelo de negócio comprovado e com geração de caixa consistente e serem forçadas à transparência —, o preço tende a estar mais alinhado com as expectativas do mercado. Mudanças bruscas como investimentos em expansão ou novas oportunidades ou ameaças surgidas por fatores externos, não demoram muito para serem precificadas no valor da ação. Vide, por exemplo, o caso da Cielo, que derreteu nos últimos anos com a fervura criada pelas inúmeras fintechs de maquininhas de cartões (PagSeguro, Stone), ou a Tesla, que disparou nos últimos meses por, segundo analistas, ter superado as expectativas no número de carros fabricados e antecipado o início da operação da sua fábrica na China.
Quanto a startup vira empresa
A prova de fogo dos valuations costuma acontecer no IPO, a oferta pública inicial de ações. Em 2019, chamou a atenção o desempenho medíocre de alguns unicórnios de tecnologia que abriram capital nos Estados Unidos. Papéis de empresas como Uber, Lyft, Peloton e Slack são negociados abaixo do valor de estreia na bolsa, em alguns casos sem darem qualquer sinal de reversão. E embora esse movimento não seja de todo estranho — muita gente com participação nas startups realiza lucro nos primeiros meses pós-IPO —, há quem acredite que, na realidade, o que está acontecendo ali sejam reajustes de valuations excessivamente otimistas do período pré-IPO.
Nenhum outro nome exemplificou melhor esse tipo de distorção que o WeWork. Com um discurso delirante e métricas esquisitas, como “EBITDA da comunidade” (?), em meados de 2019 a startup novaiorquina bancada pelo SoftBank iniciou seu road show, uma espécie de peregrinação para apresentar a empresa a investidores em potencial nos meses que precedem a abertura de capital, valendo quase US$ 50 bilhões. O mercado não mordeu a isca: a frágil história que disfarçava uma empresa de aluguel de imóveis como uma de tecnologia ruiu, exposta pela insanidade da direção e uma maquiagem mal feita dos números. O IPO foi abortado e o SoftBank teve que engolir alguns bilhões de prejuízo ao assumir a startup a fim de evitar sua quebra.
O fato de termos tantas startups bilionárias reflete um momento de excesso de crédito nos mercados internacionais. No início dos anos 2000, o SoftBank investiu em uma empresa chinesa chamada Alibaba e ficou com quase 1/3 dela. Foi uma tacada genial, daquelas que, com sorte, só se acerta uma vez na vida: nas décadas seguintes, o Alibaba virou uma das maiores empresas de varejo do planeta e, hoje, vale US$ 589 bilhões. O SoftBank, um provedor de telefonia e internet no Japão, empolgou-se e passou a investir pesado em muitas startups, com capital próprio e através do Vision Fund, um fundo de US$ 100 bilhões criado em 2018 e que teve como principal financiador o governo da Arábia Saudita.
Uber, WeWork e várias outras startups com anos de estrada e já bastante capitalizadas receberam investimentos multibilionários do SoftBank. Só no WeWork, foram investidos US$ 13 bilhões. Após o fiasco de 2019, o reajuste derrubou o valuation da startup de US$ 50 bilhões para US$ 8 bilhões. A fatia de 15% do SoftBank na Uber, outra grande aposta dos japoneses, foi comprada com um investimento de US$ 9 bilhões em 2017, o que, na época, precificou a Uber em US$ 70 bilhões. Só agora, quase um ano depois da sua abertura de capital, o valor de mercado da Uber na Bolsa de Nova York está se aproximando do seu valuation máximo da época em que era uma startup — por pura expectativa de tempos mais azuis; em 2019, a Uber deu prejuízo de US$ 8,5 bilhões.
O boom de startups unicórnio no Brasil decorre diretamente da estratégia quase megalomaníaca do SoftBank, que em 2019 decidiu expandir suas apostas à América Latina. Dos 13 unicórnios verde e amarelo, 10 receberam dinheiro dos japoneses — 99 (já vendida à chinesa Didi), Nubank, Loggi, QuintoAndar, Gympass, MadeiraMadeira, Olist, Buser, Creditas e VTEX. As demais foram: Wildlife (Benchmark Capital), Ebanx (FTV Capital) e Loft (Andreessen Horowitz, Fifth Wall Ventures e Vulcan Capital).
Sendo um mercado de tantas incertezas, os erros recentes do SoftBank ou qualquer outro fator histórico não diz muita coisa sobre o futuro dos nossos unicórnios, mas levanta algumas dúvidas sobre esses valores. Ao excesso de crédito global, nosso contexto tem ainda um fator extra de receio que começa aparecer em publicações de negócios: o de que a B3, a bolsa brasileira, talvez esteja muito cara. No início de fevereiro, a Locaweb, primeira empresa de tecnologia a abrir capital no país em muitos anos, viu seus papéis se valorizarem quase 20% (!) no primeiro dia de pregão.
Afinal, dá para confiar nos valuations de startups? “Não”, diz Rodrigo de Alvarenga. Para ele, alguns valores, incluindo o mítico US$ 1 bilhão que credencia uma startup ao grupo dos unicórnios, se padronizaram no mercado e muitas vezes são usados sem muito critério. Além disso, prossegue ele, em alguns casos pode haver a figura de investidores que tentam proteger seu capital já investido para criar condições para que o negócio tenha valor suficiente para permitir alguma saída. Não chega a ser uma fraude, porque há controles para mitigar esse tipo de ação e as consequências nesse caso seriam outras e indesejáveis; é mais como se fosse um… otimismo exagerado.
Já na avaliação de Marcela Yamamoto, da Deloitte, não é bem uma questão de confiabilidade: “Tem mais a ver com o tipo de maturidade do negócio e da empresa. As que já têm uma história de geração de caixa fornecem mais informações para formar a sua base de julgamento de valor”, explica. Rodrigo Reis, sócio da prática de transaction services, também da Deloitte, acrescenta que há vários estágios de captação de investimentos ao longo da vida de uma startup, e que “o grau de percepção e de avaliação do negócio, se é um que está crescendo, muda muito; o próprio negócio vai se transformando”. Por isso, os parâmetros em que se baseiam os valuations mudam também “quando você tem mais noção do mercado que está atingindo”.
Foto da montagem do topo: Synnylife.
Índice 20#4
- Especial A matemática dos unicórnios
- Opinião O sonho do iFood é um pesadelo para muita gente
- Guia Prático Lidando com um noticiário amargo
- Como eu trabalho Como a blogueira Cristal Muniz trabalha
- Vamos conversar? Post livre #209
- Bloco de notas O segredo das cartinhas do Nubank