O metaverso proposto pela Meta/Facebook já nasceu morto

Um robô grande vermelho, um holograma de mulher e dois homens cartunescos em torno de uma mesa numa espécie de nave espacial, com o espaço e um planeta vistos pela janela ao fundo.

Vamos começar o episódio com um exercício. Eu vou ler três declarações e você vai me dizer quem falou aquilo e quando. Vamos lá:

  1. “O tablet expande o poder da computação pessoal em empolgantes novas áreas. Combinar a simplicidade do papel com o poder do computador tornará as pessoas ainda mais produtivas. Ele torna o computador uma ferramenta ainda mais valiosa para executivos que gastam tempo em reuniões e longe de suas mesas.”
  2. “Eu imagino levá-lo a reuniões, mas também me deitar com ele à noite para ler meus e-mails e um livro. Quando meu marido me lembrar que um fim de semana especial está chegando, eu posso fazer as reservas [do hotel] online.”
  3. “O tablet representa a próxima grande evolução de design e funcionalidade do computador.”

Pensou? Quer chutar? Lá vem o gabarito: todas as frases são de funcionários da Microsoft e fazem referências ao tablet até uma década antes de Steve Jobs anunciar o iPad, em janeiro de 2010. A primeira é do Bill Gates e foi falada em 2000. É tão antigo que a Microsoft já não armazena no seu site — é o Web Archive quem guarda uma cópia do comunicado para imprensa. A segunda foi dita por Alex Loeb em 2001, quando ela ocupava o cargo de gerente de projeto responsável pelo Microsoft Tablet. A terceira e última é uma frase sem autoria em um comunicado da Microsoft, também em 2000.

Você sabe a história: a Microsoft martelou a ideia de que o próximo passo da computação seria o tablet durante o começo dos anos 2000, quando a ideia ainda pertencia à ficção científica. Não que ninguém pensasse sobre: desde o começo da década de 1990, fabricantes globais brincavam com a ideia de um tablet, construindo um atrás do outro protótipos incapazes de funcionar direito. Em 1992 e 1993, fabricantes como IBM, NEC, Toshiba e Compaq gastaram milhões de dólares e milhares de horas de trabalho de alguns dos seus melhores engenheiros para colocar de pé a ideia já descrita na ficção científica.

Não deu certo, como conta a revista Pen Computing de julho de 2001. Uma década depois, a Microsoft resolveu matar no peito a função. Àquela altura, a Microsoft era a maior empresa do mundo. Se alguém fosse capaz de tirar o tablet do papel, seria ela. A ideia era montar o projeto e repassar para que grandes fabricantes produzissem, um modelo que a própria empresa usou na década seguinte para notebooks e a Intel usou com netbooks.

Não faltou talento: para liderar o projeto do chamado Microsoft Tablet, Gates trouxe dois pioneiros da computação pessoal: Chuck Thacker e Butler Lampson. Provavelmente são nomes que não te dizem nada, mas Thacker e Lampson foram responsáveis por uma das primeiras versões do computador pessoal que conhecemos hoje.

Um passo para trás: você já deve ter ouvido falar do Palo Alto Research Center, ou PARC, o centro de pesquisa e desenvolvimento que a Xerox mantém desde 1969. A ideia de computação que você vê em todo lugar hoje, seja em formato ou em código, saiu lá de dentro. A figura mais conhecida do PARC é Alan Kay, o sujeito que conceituou a interface gráfica para usuário, que todo sistema operacional de computador usa há décadas, e a programação orientada ao objeto, um dos principais paradigmas de programação que faz o Alan ser tão admirado quanto odiado por programadores hoje1.

Thacker e Lampson trabalhavam com Alan Kay e partiram das ideias dele para criar, em 1973, um protótipo chamado de Alto. O Alto era o primeiro computador a oferecer uma interface gráfica que seguia a metáfora do desktop, da mesa de trabalho, algo que Kay tinha explorado publicamente anos antes. O Alto tinha tudo aquilo que os computadores de hoje tem: tela, teclado, processador e mouse. O computador nunca foi produzido comercialmente, mas o PARC gostou tanto da ideia que mandou fabricar cerca de 2 mil para usar internamente na Xerox.

Mas sua influência não ficou apenas nas poucas máquinas da Xerox. Você talvez já tenha ouvido a história do dia em que o Steve Jobs visitou o PARC para ver com detalhes os projetos em desenvolvimento. É o seguinte: Jobs foi convidado a fazer o tour, mesmo com muitos funcionários do PARC sendo veementemente contra. Existia o risco de que Jobs usasse alguns dos conceitos vistos ali em suas próprias máquinas. A gerência deu de ombros e mostrou. A visita foi em 1979, quando Jobs tinha 24 anos. Anos após a visita, o próprio Jobs assumiria que ficou tão embasbacado com o Alto que o usou de parâmetro para o Apple Lisa, um dos primeiros computadores da Apple, e, principalmente, o sistema operacional Macintosh. O Macintosh foi o primeiro sistema operacional gráfico em larga escala. A “culpa” é de Thacker e Lampson2.

Ambos foram contratados pela Microsoft para conduzir a produção do Microsoft Tablet na década de 1990. Com duas figuras como essa liderando e todas as outras forças da maior empresa do mundo na época, como poderia dar errado? Mas deu. A Microsoft bem que tentou: usou sua influência na imprensa, seu poder com fabricantes OEM, sua relevância entre os clientes corporativos e seu tamanho no mercado de capitais. Ninguém se animou. Tablets foram lançados e encalharam nas prateleiras. Os reviews da imprensa foram um massacre. Com o fracasso do projeto, Thacker e Lampson foram alocados em outros projetos dentro da Microsoft. Thacker morreu em 2017 e Lampson continua vivo.

Mesmo com Inês morta, Gates seguiu a insistir na ideia nos próximos anos. Não é difícil encontrar o bilionário filantropo dando entrevistas até 2010 enaltecendo o tablet.

Foto de um tablet rudimentar, com bordas grossas e uma stylus em cima, exibindo a área de trabalho do Windows XP, sobre uma mesa clara.
Imagem: PC World/Reprodução.

Até que, em janeiro de 2010, a Apple apresentou o iPad e oficialmente “começou” o mercado de tablets em escala no mundo todo. Eu comecei contando a história das falsas arrancadas dos tablets para ilustrar que, em tecnologia, alguns conceitos e/ou produtos tentam se viabilizar numa determinada fase e, sem sucesso, hibernam durante anos até voltarem com força por interesse de uma ou outra empresa e avanços tecnológicos que abrem margem para novas tentativas.

Em alguns casos, a nova tentativa repete o fracasso e o ciclo recomeça pela hibernação. Em outros, as condições específicas daquele momento (mercado, evolução tecnológica e/ou percepção do público) garantem que a ideia, finalmente, vire uma realidade. Foi o caso do tablet. Havia uma expectativa, em 2010, de que o tablet se transformaria no próximo celular como o grande produto que definiria a década seguinte e venderia como pão quente. O tablet achou seus nichos, mas nunca esteve nem perto de vender tantas unidades ou gerar tanta receita como o smartphone. Ainda assim, é inegável que virou uma realidade.

Mas tem um recado aqui: não se engane. Algumas tecnologias parecem fadadas a viver a médio prazo nas páginas de livros, cenas de desenhos animados e na imaginação do público. Quer uma rápida? Carros voadores. Alguns fabricantes como a Embraer defendem que têm protótipos confiáveis, mas a gente está muito longe ainda de um mercado novo que revolucione a forma como nos locomovemos. A ideia dos Jetsons, do Blade Runner e d’O quinto elemento parece fadada à ficção em médio prazo.

Você já sabe por que eu estou falando isso: tal qual o tablet, o metaverso já teve outras tentativas fracassadas. Tal qual o tablet, o metaverso acordou de sua hibernação em um mercado profundamente diferente e sendo apoiado por uma das maiores empresas do mundo. A gente ainda não sabe com certeza se o metaverso vai ser tablet ou carro voador em longo prazo, mas a gente já tem evidências suficientes para cravar algo: essa iteração do metaverso proposta pelo Facebook nem chegou a bater sua asas antes de sair do ninho. Lançou-se ao céu e se espatifou no chão. Já dá para falar isso? Eu acho que já dá. Outras pessoas, com opiniões mais respeitadas, também. Existe o risco desta cravada vir morder meu tornozelo daqui a alguns anos? Sempre existe. Os ingleses encapsularam essa certeza no ditado que diz que as únicas certeza que temos são a morte e os impostos. Ainda assim, vale explorar por que o metaverso do Facebook parece morto antes mesmo de começar.

Neste episódio do Tecnocracia, a gente vai falar do metaverso da Meta (novo nome da empresa Facebook) e de como, pela história da tecnologia, algumas empresas e/ou executivos tentaram emplacar à força a ideia que eles tinham — e que lhes serviam comercialmente — sem combinar com os mais interessados: o público.

A cada quinze dias (e dessa vez eu posso falar isso com gosto), o Tecnocracia vasculha os arquivos de alguma revista impressa desconhecida da década de 1990 e faz relações misturando academia, pensata e o livro de piadas do Ary Toledo para explicar, bonito e bonita, que tudo é replay, tudo já passou, a gente só está fadado a repetir. Eu sou o Guilherme Felitti e o Tecnocracia está na campanha de financiamento coletivo do Manual do Usuário. Quem pagar mais de 16 reais por mês ganha os adesivos do podcast e a chance de ouvir o Tecnocracia Balcão, o episódio ao vivo mensal no grupo do Manual no Telegram. Esse episódio aproveitou trechos de um Balcão feito há meses. Desde o mês passado, a campanha aceita Pix para pagamentos anuais.

Esse episódio vai se basear em 3 “dades”: ancestralidade, utilidade e realidade. Ancestralidade, utilidade e realidade. Comecemos pela ancestralidade, pela história.

Blablablá Snow Crash blablablá Neal Stephenson blablablá livro de 1992. Pronto, tiramos isso da frente. Mas tem um outro assunto colado ao metaverso que não tem como não falar. “Ah, Guilherme, vai falar do Second Life.” Vou. Acompanhar o metaverso do Facebook após cobrir a ascensão e queda do Second Life funciona como um constante déjà-vu (quem é a Luciana Gimenez francesa?).

Avatares do Second Life sentados em sofás em um ambiente aberto, com árvores e um castelo ao fundo.
Second Life. Imagem: HyacintheLuynes/Wikimedia Commons.

A primeira implementação comercial de sucesso do conceito descrito pelo Stephenson veio de uma empresa da Califórnia. Jovens, há 20 anos, para você ouvir som ou áudio online, você dependia de um software horroroso chamado RealPlayer. Era medonho, ruim demais. Pois bem. Em 1999, um sujeito chamado Philip Rosedale, que já tinha trabalhado na RealNetworks, responsável pelo RealPlayer, montou uma empresa que faria hardware para computação imersiva.

A abordagem do Rosedale para a Linden Labs era algo parecido com a Apple: integração máxima entre software e hardware. A Linden estava muito à frente do seu tempo — o hardware era enorme, desajeitado e não cumpria bem a função de mergulhar o usuário em um mundo virtual. A questão é que o software mostrou ter sucesso para rodar não nos protótipos da Linden, mas em computadores poderosos. Em 2003, após anos de tentativas, a Linden meio que largou mão do hardware, pegou o software e lançou com o nome de Second Life.

O Second Life atraiu atenção do Vale do Silício logo de cara: menos de dois anos depois, o serviço já era capa da revista de negócios BusinessWeek como o futuro da computação pessoal. Em 2008, a IBM anunciou que ajudaria a Linden a criar metaversos corporativos, apostando que o futuro da computação corporativa era o metaverso. O que só prova que o faro da IBM está completamente desajustado há no mínimo 15 anos, mas isso é assunto para outro episódio.

O que você fazia no Second Life? Eu não tinha a menor ideia e, por isso, fui apurar. Egotrip rápida: o Second Life foi um dos primeiros assuntos em que eu mergulhei para cobrir compulsivamente na minha carreira jornalística. Eu escrevi longamente sobre a plataforma, principalmente os altos. Conheci a galera que representava a Linden no Brasil, os estúdios que faziam lojas e avatares e vendiam em real, entrevistei uma galera que passava o dia inteiro colado no computador. Para tanto, passei horas e horas em uma LAN house metida a besta perto da Paulista, já que era preciso ter um PC poderoso para rodar o Second Life, tirando fotos, voando, falando com as pessoas. O primeiro blog jornalístico que eu tive continua no ar no WordPress.com com muitas dessas apurações.

Capa da BusinessWeek com um avatar virtual de uma mulher oriental, com roupa vermelha típica chinesa, e a chamada: “Mundo virtual, dinheiro real”.A capa da BusinessWeek abordava o Second Life por meio de Ailin Graef, a primeira milionária do metaverso. Graef, cujo avatar era conhecido por Anshe Chung, fez uma pequena fortuna vendendo terrenos e prédios no Second Life, muito antes de especialistas darem dicas para comprar terreninhos básicos na periferia do metaverso. No ápice do negócio, a Anshe Chung Studios empregava 30 funcionários na cidade de (atenção) Wuhan, na China. Hoje a gente conhece Wuhan por outra razão completamente diferente. A CNN chamou Chung de “Rockefeller do Second Life”, uma frase ainda mais estúpida em 2022 do que quando foi escrita. Em 2006, a Cnet, um dos veículos de tech mais relevantes da época, foi entrevistar Chung. O encontro começou da seguinte forma: “infelizmente, conforme a entrevista estava começando, o evento foi atacado por um ‘griefer’, alguém com a intenção de disrupting the proceedings. O griefer conseguiu atacar o espaço da Cnet por 15 minutos com — bom, não existe um jeito delicado de explicar isso — pênis voadores animados.” Lima Duarte chamaria de “caralhinhos voadores”.

Muita gente mordeu a isca esperando o que parecia ser um inevitável sucesso: Adidas e Dell abriram lojas, Disney criou conteúdo baseado nos seus filmes, a Reuters abriu uma sucursal para cobrir o metaverso, a TIM lançou quatro ilhas, a Fox lançou o terceiro filme da franquia X-Men no Second Life

No Brasil, a Linden fechou acordo com uma companhia de Bauru chamada Kaizen para tropicalizar o Second Life. A Kaizen criou a Ilha Brasil, dedicada ao país, onde se instalaram os mais diversos tipos de negócios: desde a feira Mercado Mundo Mix a partidos políticos, como o Democratas e o PSDB (o que corrobora que partidos alinhados à direita desde sempre tiveram mais interesse em explorar novas tecnologias para fazer política, assunto de algum Tecnocracia desta temporada ainda). A Petrobrás comprou terrenos, as construtoras Cyrela e Tecnisa anunciaram que ergueriam torres digitais, a TAM disse que venderia passagens, o IDG, a editora especializada em tecnologia onde eu comecei minha carreira jornalística, montou um stand virtual para um evento.

O hype era tanto que o Gartner estimou, em 2007, que três anos depois “70% da população nas nações desenvolvidas passará dez vezes mais tempo por dia interagindo com pessoas no mundo virtual do que no mundo físico”. Não passou nem perto, o que nos ensina a sempre encarar essas projeções futurólogas de consultorias com os dois pés atrás.

Do jeito que subiu, o Second Life caiu rápido. Em 2008, o mesmo ano em que a IBM ainda anunciava investimentos, a bolha imobiliária estourou nos Estados Unidos, a Reuters fechou a sucursal e muitas empresas seguiram esse caminho. Por quê? Muitas razões. A falta de regras rígidas para manter a comunidade segura, como vimos na entrevista atrapalhada por rolas voadoras animadas, foi uma delas. Mas a principal era simples: o Second Life tinha hype, mas não tinha usuários. Era necessário um PC muito bom para rodá-lo numa época em que o brasileiro ainda estava comprando seu primeiro computador para usar o Orkut. O balão murchou, empresas entenderam que enterraram milhões de dólares e que toda aquela expectativa não se justificaria. A Linden Labs encolheu, mas segue operando até hoje. O Second Life continua no ar e milhões de dólares continuam sendo convertidos em moeda digital (do qual a Linden pega uma parte, seu modelo de negócios). Parece que o metaverso tinha encontrado seu nicho.

Até Mark Zuckerberg ressuscitá-lo. Aí a gente parte para o segundo termo: utilidade. Porque a limitação técnica do Second Life não nos permitia aferir com precisão se havia efetivamente algum uso do metaverso capaz de tornar a nossa vida melhor.

Imagem virtual de um avatar de Mark Zuckerberg com a torre Eiffel e uma igreja ao fundo, num gramado verde.
Não se engane: esta imagem é de 2022 e foi compartilhada pelo próprio Zuckerberg dia desses. Imagem: @zuck/Facebook.

Então, uma pergunta honesta: qual aplicação do metaverso que seria melhor ou mais útil do que já temos disponível com a tecnologia de hoje? Quer pensar? Tudo bem. Vou pegar um café.

Pronto? Pensou? Se você falou games imersivos, parabéns. É a única resposta que eu conheço. Todas as outras aplicações são possíveis com a tecnologia atual. Em janeiro de 2022, meses após a coletiva do Facebook anunciando o foco em metaverso, voltou a circular uma demonstração feita pelo Walmart sobre como “faríamos compras” no metaverso. A demonstração não era nova — tinha sido criada por uma agência digital para “impressionar influenciadores na SXSW” em 2017. O que mais assustou é que, mesmo feita a contextualização, a demonstração era assustadoramente parecida com o que o próprio Facebook tinha mostrado meses antes. Como define bem o site The Verge: “Por mais que o clipe não seja um exemplo da visão do metaverso mais recente, o fato de que é impossível distingui-la deste material é ruim.” Em cinco anos, não mudou nada. O vídeo mostrava alguém com óculos de realidade virtual conduzindo um carrinho virtual entre prateleiras abarrotadas de garrafas de vinho, latas de molho de tomate e azeite de oliva. Uma consultora de compras aparecia à sua frente dando sugestões de compras, numa versão humana do Clippy que ficava enchendo seu saco para sugerir coisas que você não queria fazer no Office 97.

A experiência que o vídeo-conceito para o SXSW (acima) apresentava era melhor que a experiência que temos agora? Quem em sã consciência acha que comprar por comando de voz ou no ponto de ônibus é pior que visitar uma versão soturna do seu hipermercado? Ou pior: ter reuniões no metaverso se torna mais confortável que no atual arranjo? As incontáveis horas que você passa em reuniões se tornarão menos cansativas com uma tela ainda mais próxima dos olhos? A jornalista Joanna Stern, do Wall Street Journal, ficou 24 horas imersa no metaverso. Além dos olhos irritados e experiências boas e ruins, ela precisou tomar Advil para aliviar “as enxaquecas provocadas pelo movimento”. Se você já tem que tomar remédio depois de um dia inteiro em Zooms, Teams e Meets, dobre a dose.

O que nos leva ao âmago do segundo termo: quão mais produtiva se torna a nossa vida hoje no metaverso? Uma sociedade só adota amplamente uma tecnologia quando ela introduz uma nova forma mais fácil de fazer as coisas. Descer na chuva para ficar estendendo braço para táxi era gostoso? Levar CD player para cima e para baixo era bom? Fazer ligação no orelhão era prático? As razões para se adotar o smartphone são óbvias a ponto de a gente nem se lembrar direito como fazia X ou Y antes dele — e, quando se lembra, suspira de alívio de não ter que continuar mais fazendo. E o metaverso? Que grande problema ele resolve? Em tecnologia, existe um conceito chamado “killer app”, ou “aplicativo matador”: uma aplicação tão útil que vai fazer você vencer sua desconfiança e a curva de aprendizado para adotar uma tecnologia.

Falemos de novo no Jobs: em 1979, no mesmo ano em que visitou o PARC e viu o sistema gráfico em ação, um estudante chamado Dan Bricklin escreveu o código de um programa simples para tabular informações no seu Apple II, lançado dois anos antes. O app era de planilhas e se chamava VisiCalc. Em meses, o software se tornou uma febre para entusiastas e convenceu muitas empresas a comprarem um Apple II só para tabular seus dados de forma mais fácil. Na comparação entre o VisiCalc e o método analógico, era óbvio quão melhor era usar o computador. Vinte anos depois, o próprio Jobs admitiu em entrevista que, ao se tornar o primeiro “killer app” da indústria de software, o VisiCalc deu sobrevida ao Apple II.

Qual é o “killer app” do metaverso? Games? Mas games são considerados um “killer app” quando a expectativa é que o metaverso substitua ou complemente a nossa existência real?

Outra coisa: por mais que já tenha sido mais caro, o hardware que dá acesso ao metaverso imersivo não é exatamente barato. Você pode dizer que o Horizon do Facebook não é todo metaverso. Existem tantos outros que não exigem, necessariamente, óculos de realidade virtual. No Decentraland, por exemplo, você pode entrar na hora e passear pelas ilhas, conversar com os outros e observar e comprar NFTs à venda. Não é piada, você pode entrar agora mesmo e customizar sua imagem. Customizações mais específicas exigem grana, pagos em Ethereum. Para que serve além de enfeitar seu avatar? Nada. O dinheiro gasto para comprar terrenos serve para o que fora do Decentraland? Nada também. Todo o dinheiro que você precisa investir não sai dali. Se sai, é no máximo como bem especulativo revendido quando alguém entende que vale mais do que você pagou.

E agora finalmente chega o entusiasta. “Guilherme, você não está considerando as diferentes aplicações de XYZ.” Ok, me explique da maneira mais mastigada quais. Porque toda explicação que ouço de entusiastas do metaverso é um emaranhado de conceitos teóricos que nunca respondem diretamente à dúvida: qual é a utilidade? Eu sei que nem tudo na vida tem que ter utilidade, mas se quiser provocar essa mudança sísmica a que se propõe, o metaverso terá que ter além da diversão. O que, aliás, nos leva a outro ponto: você conhece alguém que defenda intransigvelmente a utilidade do metaverso cujo salário não dependa do sucesso do metaverso? Como convencer centenas de milhões de pessoas a comprarem um gadget de US$ 200 para abraçar o chamado “PRÓXIMO PASSO DA INTERNET” se ele é menos útil na prática que o atual?

O que nos leva ao último termo: realidade.

Definamos, então, metaverso como um ambiente digital onde nós, por meio de avatares, interagimos socialmente com conhecidos e desconhecidos. Em uma definição mais ampla que não implique em imersão, já vivemos no metaverso há mais de uma década. Reportagem da revista New Yorker em novembro de 2021, dias após o anúncio do Facebook, digo, Meta:

O que a apresentação de Zuckerberg ignora é que já vivemos em um mundo onde o digital e o físico interagem, como já vivemos há mais de dez anos. Plataformas digitais regidas por algoritmos, como Facebook, Instagram, Twitter, Spotify, Tiktok e Amazon, influenciam como nós socializamos, recebemos notícias, consumimos cultura, procuramos emprego, realizamos trabalho e gastamos dinheiro. Independente se estamos apenas interagindo no mundo real, realizamos todas essas ações com a percepção adicionada que elas estão acontecendo online, com as consequências ecoando tanto nos espaços físico como digital.

Em outras palavras: a cada minuto que você, entediado por esperar o elevador ou cachorro mijar, entra no Twitter, você está mergulhando no metaverso. Pense em quantas das suas horas acordadas são gastas em interações sociais com conhecidos e desconhecidos em ambientes virtuais. Bastante, né? Quando estamos com a cara colada em uma tela, habitamos um metaverso. Ele já existe, com um grande naco já sob a batuta da Meta. O que a Meta está tentando vender é uma imersão completa com potencial de lhe dar algumas vantagens competitivas.

Quais?

Algumas razões explicam a transição zuckerberguiana para o metaverso, mas eu quero destacar duas. A primeira é que a Meta tem um problema de interface. Quando eu falo interface, me refiro a ter um contato com o consumidor que não seja intermediado por um rival. O Google tem o Android. A Apple, o iOS. A Amazon, toda a linha Echo. Até a Samsung tem uma área sua, nos celulares Galaxy e computadores. Mas o Facebook não. Eles tentaram com a HTC em um celular lançado em 2012 e foi um fracasso retumbante. Tentaram com a linha Portal, mas as vendas ruins forçaram a empresa a focar no mundo corporativo. Também, quem em sã consciência vai colocar um hardware do Facebook na sua cozinha para ouvir toda sua vida?

Essa tentativa de achar uma interface própria se tornou ainda mais prioritária depois da porrada que a empresa levou com a decisão da Apple de limitar a coleta de dados por aplicativos no iOS. Não tem muito a ser feito: não dá para fazer um sistema operacional móvel e/ou um smartphone. Restou competir em digital home, não só contra o Google, mas contra a pioneira e líder do setor, a Amazon. Boa sorte.

Se a tal migração em massa para o metaverso que Zuckerberg está tentando incentivar, tal qual um pastor açoitando suas ovelhinhas, der certo, a Meta ganha uma interface para chamar de sua. Mais que isso: ganha também uma quantidade enorme de novos dados para processar e explorar comercialmente. É esse o segundo ponto para a transição. Meta e Google são, em suma, empresas de publicidade. Elas coletam e processam grandes volumes de dados dos usuários para dar aos anunciantes recortes demográficos bastante precisos para anúncios publicitários de maior efetividade. Com os dados que têm agora, ambas sabem bastante: o que lemos, quem são nossos amigos, onde estamos e até a velocidade com que andamos. Mas falta quebrar a barreira freudiana. Um celular coleta dados, mas um óculos de realidade virtual tem potencial de coletar ainda mais.

Reportagem do jornal Washington Post sobre os perigos de privacidade embutidos no metaverso:

Headsets de realidade virtual podem coletar mais dados sobre nós do que telas tradicionais, o que dá às empresas mais oportunidades para guardar e compartilhar esses dados para criar perfis e servir anúncios. Eles podem dar aos empregadores mais maneiras para monitorar não apenas nosso comportamento, mas também as nossas mentes. Advogados focados em direitos digitais e experts sobre privacidade defendem que não é difícil o governo colocar as mãos em dados sobre corpos vindos de tecnologia VR e existem poucas barreiras prontas para proteger nossos filhos da coleta sem restrição de dados e da manipulação psicológica.

Ao cruzar informações biométricas sobre como reagimos a impulsos específicos (como expressão facial, ritmo de respiração e pressão arterial), é possível tabular que tipo de conteúdo provoca qual tipo de reação. É uma aplicação ainda rudimentar, mas aumente um pouco a coleta de dados e o poder de processamento e não é um enorme delírio falar na monetização não apenas de ações, mas também de sentimentos. O que poderia dar errado quando uma empresa com baixíssimos padrões morais como o Facebook resolve atrelar uma angústia sua a uma publicidade?

Mas vamos voltar à definição de metaverso. Talvez você ache a minha definição ampla demais e queira restringir metaversos apenas à imersão virtual, a entrega dos seus sentidos ao processamento do silício. Ok. Já existem outros metaversos de sucesso rolando. O que é o Minecraft? O que é o Fornite? O que a Epic está fazendo com o Fortnite já é um metaverso de sucesso comercial — a Warner coloca o Lebron James no metaverso para lançar Space Jam 2, o Travis Scott lança música lá dentro, a própria Epic coloca skins do Neymar na Temporada 6 do Capítulo 2. Tem avatares, tem conhecidos e desconhecidos, tem socialização, tem consumo de conteúdo. Em maio de 2020, eram 350 milhões de usuários no Fortnite, muito mais do que o Second Life jamais sonhou. Roblox tem 43 milhões de usuários diários e fez um IPO de sucesso em março de 2021 que avaliou a empresa em US$ 45 bilhões.

Imagem “in-game” de Fortnite, com uma personagem de costas, segurando um celular que emite uma luz azul que faz a prévia de uma construção em uma torre de madeira.
Imagem: Epic Games/Divulgação.

De maneira geral, o metaverso já existe há alguns anos, só não é dominado pelo Facebook.

O que nos leva ao ponto principal: o Facebook não quer inventar o metaverso. Ele já está aí. Ele quer monopolizá-lo, tal qual faz hoje com redes sociais e aplicativos de mensagem. É tipo o sujeito do trabalho em grupo que não fez nada e, ainda assim, acha que pode chegar dando ordens. Zuckerberg está usando seu tamanho para criar um ambiente virtual de imersão que, tal qual o Facebook e o Instagram, seja controlado por apenas uma empresa. Haverá interoperabilidade com outros serviços, mas deverá ser o mesmo cercadinho (“walled garden”, diria Luciana Gimenez) que o Facebook sempre foi, controlado com mão de ferro, sem transparência e com privacidade zero.

Curiosa a epifania de Zuckerberg acontecer no exato momento em que o Facebook/ a Meta está sob forte pressão regulatória e judiciária. A Meta deu a festa, destruiu a casa alugada e, para não lidar com a limpeza, fecha a porta e vai embora para a próxima festa. Só que precisa de uma boa desculpa para a transição. Ele vai lá e arranja a que tem. Abre aspas para o escritor e professor da NYU Scott Galloway na revista New York:

Na verdade, o Facebook está basicamente gastando US$ 10 bilhões esperando que, no curto prazo, o assunto mude. O investimento lhe dá a oportunidade de falar sobre o metaverso em vez da insurreição de 6 de janeiro ou da depressão juvenil. Dá a Zuckerberg a chance de discorrer sobre o metaverso em vez de falar “Olá, eu sou CEO do Facebook, eu estou arruinando o mundo”.

Nesta jornada, Zuckerberg quer pintar o metaverso como um futuro inevitável. Mas é? Para algumas aplicações específicas, a imersão em realidade virtual já é usada: treinos de cirurgia, recriação da sala de casa para ver como fica um novo móvel, educação e, óbvio, games. Mas mergulhar as interações sociais que já temos em um ambiente virtual gráfico não faz o menor sentido do ponto de vista financeiro e prático. Cada notícia do metaverso do Facebook me dá o forte déjà vu que é o Second Life de novo, desta vez com mais dinheiro e, o lado bom, um ceticismo maior do que há 15 anos.

A transposição da internet de texto para a internet visual, tão festejada e repetida na ficção científica, fica repetindo o mesmo ciclo há décadas. Abre aspas para uma reportagem da Wired com uma metáfora que eu gostaria de ter escrito:

A tecnologia está sempre prestes a virar uma esquina, a se tornar mais do que apenas um game, prestes a revolucionar campos como arquitetura, defesa e medicina. O futuro do trabalho, entretenimento, turismo e sociedade está sempre prestes a sofrer uma enorme atualização virtual. A realidade virtual é um pouco como o garoto branco e rico com pais famosos: ele nunca para de cair para cima, parceiro3, sempre julgado pelo seu “potencial”, não pelos resultados.

O Facebook tenta pegar essa rabeira. Enquanto se baseia em uma ideia de imersão virtual que já presenciamos e abandonamos, Zuckerberg tenta nos convencer aos berros de que estamos nos preparando para o futuro.

  1. Aprender OOP é foda, eu sei, mas depois que você entende minimamente consegue ver como ela é sua aliada para projetos que precisam de escala. Se você não programa, provavelmente essas últimas palavras ou Kinglon seriam a mesma coisa.
  2. Existe um documentário excelente sobre essa fase chamado Triunfo dos nerds, produzido pelo Robert Cringley, disponível em trechos no YouTube. O trecho específico em que o Jobs assume a influência do PARC e do Alto e como os funcionários tentaram evitar sua visita são deste documentário.
  3. Eu coloquei o “parceiro” aqui, não está na reportagem da Wired.

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3 comentários

  1. No Brasil, só havia uma única razão social “Metaverso” até 2021, a única marca “Metaverso” depositada ou registrada, no mundo, apenas duas empresas e duas marcas, nós: a Metaverso ® Inteligência Artificial Ltda, e outra, se não me engano, na Espanha. Somos Metaverso desde 2010, somos @metaverso em qualquer lugar. Ainda somos a única marca registrada, na CVM Americana, no primeiro semestre de 2022, houveram 1200 ocorrências de “metaverse”, em todo ano de 2021, 280 ocorrências, e nós últimos 20 anos antes de Zuck usurpar? Pasmem… Menos de uma dúzia. Nossa briga só começou, acompanhe em https://metaverso.com.br

  2. “A transposição da internet de texto para a internet visual, tão festejada e repetida na ficção científica, fica repetindo o mesmo ciclo há décadas.”

    Interessante que a transposição já está acontecendo em diversos nichos, a “internet visual” que a galera está usando é o tiktok e não um mundo virtual 3D.