Luta contra sindicatos expõe o lado retrógrado da Big Tech

Dois homens de costas, vestindo camisetas com o logo do sindicato de funcionários da Amazon e o nome dele — “Amazon Labor Union”.

Terminado o primeiro semestre, 2022 já trouxe algumas novidades técnicas bastante relevantes em tecnologia: o chip M2 solidificou a Apple como um player cada vez mais poderoso no setor de chips, o DeepMind decifrou a estrutura de quase todas as proteínas conhecidas e o telescópio espacial James Webb produziu as imagens mais detalhadas do Universo, enquanto o metaverso, tal qual um carro a álcool numa manhã gelada de julho na década de 1990, dá várias partidas em falso com a esperança de pegar no tranco.

Como a gente já falou aqui, nos últimos anos os assuntos mais interessantes que acontecem no mercado de tecnologia não têm relação necessariamente com chips, códigos e placas de silício. São notícias que mostram como a tecnologia saiu do caderno de informática dos jornais1 para adentrar nas coberturas política e policial. É desse certame que, ao meu ver, vem um dos assuntos mais interessantes em tecnologia em 2022. Envolve um tipo de organização inventada não na última década e nem mesmo no último século. A Mesopotâmia e a Babilônia já experimentavam essa tecnologia 2 mil anos antes de Cristo. Após a Revolução Industrial, com o fim do vassalagem e a emergência de uma economia baseada na indústria, o movimento ganhou ainda mais força e os traços que observamos até hoje. Essa “tecnologia” não envolve necessariamente cálculos. É mais uma forma de mobilização e interação humana do que uma tecnologia naquele sentido clássico da acepção de tecnologia como uma ferramenta externa que lhe permite melhorar algo já possível ou executar algo impossível.

Que diabos é? A Luciana Gimenez chamaria de “union”. A gente chama de sindicato. As manchetes envolvendo a Big Tech no último ano trazem inúmeros exemplos de como Amazon, Apple, Google, Facebook, Uber e tantos outros se mobilizam para desmontar movimentos de sindicalização cada vez mais fortes dentro de suas operações. É uma onda que começa a ferver nas Big Tech, mas transborda para vários outros negócios da chamada “nova economia”, como as startups de mídia lançadas na última década para explorar vertentes e coberturas que os grandes veículos não se interessavam ou eram incapazes de fazer engrossaram também a onda.

O crescente interesse pela sindicalização afeta, principalmente, os Estados Unidos. Quer um exemplo? Na lista das 100 pessoas mais influentes do mundo publicada pela revista Time, estavam lá entre Zendaya, Oprah, Nadal e Zelensky dois nomes que você provavelmente nunca tinha ouvido falar: Derrick Palmer e Chris Smalls.

Moradores de Nova York, Palmer e Smalls lideraram a criação do Amazon Labor Union, primeiro grande sindicato de funcionários da Amazon. O feito da dupla é ainda mais relevante quando se considera que a Amazon, a quinta maior empresa do mundo, utilizou táticas anti-sindicato que a National Labor Relations Board, agência federal do governo dos Estados Unidos que regulamenta as relações privadas entre empregadores e empregados, considera ilegais. O texto da revista Time explicando a relevância de Palmer e Smalls foi escrito pelo senador e ex-presidenciável norte-americano Bernie Sanders: “Em uma época de desigualdade de riqueza e renda extrema e crescendo, os trabalhadores dos EUA estão corajosamente lutando de volta e dizendo aos bilionários e às empresas mais poderosas do mundo que elas não podem ter tudo”.

Homem preto de perfil, com bandana, óculos escuros e brinco, vestindo uma camiseta de manga longa vermelha, fala ao microfone. Ao fundo, cartazes verdes levantados e levemente desfocados.
Chris Smalls em protesto de funcionários da Amazon. Foto: Pamela Drew/Flickr.

Parece inevitável, porém, que uma hora o movimento que nasceu na sede norte-americana se espalhe para as operações globais — seja por pressão dos funcionários ou pela criação de políticas globais pelas empresas. Na Europa, sempre mais adiantada na regulação do setor de tecnologia, a sindicalização já está em curso. No Brasil, o movimento não aparece tão quente quanto nos EUA, mas a parte em que as grandes empresas adotam métodos longe da honestidade já chegou, com a criação de campanhas que falsamente se passam por funcionários contra a sindicalização.

Além de Palmer e Smalls, a emergência de figuras como o também a norte-americana Jaz Brisack, por trás do primeiro sindicato do Starbucks; o britânico Mick Lynch, responsável por orquestrar as maiores greves ferroviárias dos últimos 30 anos; e o brasileiro Paulo Galo2, voz mais alta do enorme grupo formado por entregadores de aplicativos no Brasil, é também reflexo inegável das novas relações trabalhistas que colocaram centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo em empregos mediados por plataformas tecnológicas sem nenhum tipo de benefício e sem poder parar pela necessidade — empregos precarizados. As consequências do trabalho precarizado, coberto pelas plataformas por aquele elã delirante de “empreendedorismo”, sobre o qual já falamos no Tecnocracia #12, são o coração dessa ascensão fulminante da sindicalização na tecnologia.

Nos últimos 30 anos, as grandes empresas de tecnologia contaram com crescimentos explosivos, a boa vontade do público e centenas de milhões de dólares gastos em estratégias anti-sindicato para minarem a mobilização dos seus funcionários que buscam melhores condições de trabalho. No último ano, essa estratégia foi exposta e começou a falhar. “Sindicato” deixou de ser um termo associado apenas à velha economia, das indústrias e dos metalúrgicos. Com uma nova roupagem, atualizada para os problemas introduzidos pela nova economia, os sindicatos estão de volta. É sobre isso que o sétimo episódio da quarta temporada do Tecnocracia vai falar.

A cada quinze dias, um pouco ou bastante mais, o Tecnocracia faz uma pesquisa profunda para a gente entender como alguns dos maiores impactos da tecnologia nas nossas vidas não têm relação alguma com algoritmos de deep learning ou computação quântica. É coisa antiga, de séculos, maquiada só para parecer mais aceitável. Eu sou o Guilherme Felitti. O Tecnocracia está na campanha de financiamento coletivo do Manual do Usuário. Por R$ 179 ao ano via Pix (ou R$ 16 por mês), você tem direito a um adesivo do podcast e a me ouvir ao vivo no Balcão, que costuma acontecer uma vez por mês no grupo do Telegram.

Vamos começar com o básico: que diabos é um sindicato? Existem várias definições, mas vamos falar de três.

A primeira é do livro The history of trade unionism, de Sidney e Beatrice Webb, publicado em 1920. Segundo eles, o sindicato “é uma associação contínua de recebedores de salários com o objetivo de manter ou melhorar as condições de suas vidas profissionais”3. A segunda é de um livro sobre o qual você já ouviu falar: O Capital, do alemão Karl Marx, para quem “os sindicatos desejam nada mais que prevenir a redução dos salários abaixo do nível em que são tradicionalmente mantidos por vários ramos da indústria. Isso quer dizer, eles pretendem prevenir que o preço do poder de trabalho caia abaixo do seu valor“. Por fim, uma terceira definição vem do filósofo e economista inglês John Stuart Mill: “Se fosse possível para a classe trabalhadora, ao se aliar consigo mesma, aumentar ou manter o valor geral dos salários, é difícil dizer que isso seria algo não só a não ser punido, mas a ser saudado e encarado com alegria.”

No geral, todos passam a mesma ideia: funcionários que, unidos, adquirem maior capacidade de negociar a obtenção de novos ou a manutenção de salários e benefícios trabalhistas.

É inegável que os sindicatos têm uma relação histórica e próxima com a política, principalmente movimentos associados com a esquerda e a centro-esquerda. Isso é um fato para, como o Tecnocracia se esforça muito pelos últimos quatro anos, entender o mundo como ele de fato é. Para fazer jus à tentativa, abordaremos o assunto com fatos.

Primeira coisa: organização de trabalhadores para negociar com os patrões precede Karl Marx. Décadas antes do recém trintão sentar sua bundinha para escrever “O Manifesto Comunista”, greves de trabalhadores com o único objetivo de negociar melhores salários ou condições de trabalho já ocorriam na Europa e nos Estados Unidos. Abre aspas para o livro A history of trade unionism in the United States, publicado pelo então professor-assistente da Universidade de Wisconsin Selig Perlman em 1922:

A primeira greve de trabalho genuína nos EUA aconteceu em 1786, quando os impressores da Filadélfia pararam para exigir um salário mínimo de seis dólares por semana. A segunda greve, registrada em 1791 também na Filadélfia, foi de carpinteiros exigindo uma jornada diária de 10 horas. Os marinheiros de Baltimore tiveram sucesso em aumentar seus salários por meio de greves nos anos de 1795, 1805 e 1807, mas seus esforços eram recorrentes, não permanentes. Ainda mais efêmeras eram as greves de marinheiros e construtores de navios em 1817 em Medford, Massachusetts. Sem dúvida muitos outros esforços ocorreram durante os 1820, mas não restou nenhum registro.

Marx nasceu em 1818, quando dezenas de greves no sindicalismo moderno já tinham sido realizadas, e publicou seu livro apenas em 1848. Bom lembrar que estamos falando do sindicalismo moderno. Muito antes, lá na Mesopotâmia e na Babilônia, de 2,3 mil a 1,7 mil antes de Cristo, já existiam leis que determinavam pagamentos mínimos e horas máximas de trabalho para determinadas funções. O Código de Hamurabi, inclusive, é lembrado pelo “olho por olho, dente por dente”, mas um dos seus códigos instituia um salário mínimo que um dono de navio deveria pagar aos funcionários contratados para construí-lo.

Não à toa, essa sucessão de greves que listei aconteceram quando a Revolução Industrial já estava a pleno vapor. A transição dos pequenos estúdios artesanais liderados por pequenos empresários para grandes conglomerados que dividiam funções específicas em enormes fábricas introduziu uma mudança importante no cenário do trabalho: você tinha um contingente cada vez maior de trabalhadores, não de gente que trabalhava para si mesma. É aí que começa um movimento cíclico no qual estamos: em momentos de grande concentração de mercado e/ou grandes transições econômicas em que conglomerados ganham poder, existe uma resposta: trabalhadores passam a ver os sindicatos com bons olhos, a organização sindical se torna maior e, por meio de negociações ou greves, algumas condições de trabalho melhoram. É aquela sístole e diástole sobre a qual já falamos no Tecnocracia #10. Talvez a principal novidade que a Revolução Industrial trouxe em médio prazo foi a oficialização do movimento sindical — na Inglaterra de 1832, seis trabalhadores rurais que criaram um sindicato foram presos, julgados e, considerados culpados, deportados para a Austrália.

Sístole — o maior sindicato norte-americano, o American Federation of Labor, nasce em 1886 como resposta não apenas às condições de trabalho trazidas pela Revolução Industrial como também pelo caos — econômico, inclusive — deixado pela Guerra Civil dos EUA.

Sístole de novo — após a crise de 1929 o mercado passa por um momento de popularização dos sindicatos. Abre aspas para reportagem da revista Time: “Sindicatos se tornaram populares nos EUA a partir dos anos 1930, com a porcentagem de membros subindo de apenas 10% da força de trabalho total em 1936 para cerca de um terço no meio dos anos 1950, segundo pesquisa publicada em 2021 no Quarterly Journal of Economics.”

Diástole, de novo a reportagem da Time: “Em 1970, os membros de sindicatos chegaram ao seu ápice com 17 milhões nacionalmente, mais de 30% dos funcionários do setor privado. Em 2022, o número tinha caído pela metade.”

Em todo episódio do Tecnocracia, antes de sentar minha bundinha para escrever eu fecho algumas perguntas básicas que vão ajudar eu e você a pensarmos sobre o assunto. Para esse tema, duas pareciam óbvias, mas fundamentais. Façamos a primeira: por que as empresas lutam contra a organização sindical dos seus funcionários?

De novo, a reportagem da Time: a queda do sindicalismo a partir da década de 1980 acontece “graças à cultura pela qual empresas se focaram em maximizar valor para acionistas e minimizar benefícios aos trabalhadores, assim como uma ênfase jurídica no valor da propriedade privada e do lucro privado”. Estudo do National Bureau of Economic Research publicado em 2009 sugere que cada voto de funcionários pela sindicalização resulta em uma perda de valor de mercado de US$ 40 mil, muito embora o próprio estudo sugira que, ao investigar valor de mercado, a sindicalização pode alterar processos internos sem, no entanto, impactar a lucratividade.

“O efeito real da sindicalização no sucesso de negócios é difícil de cravar, outros estudos alegam, já que o processo é específico por natureza. De acordo um amplo estudo de 2003 que revisou quase 30 mil empresas durante duas décadas, existem dois tipos principais de empresas onde a sindicalização ocorre: funcionários se organizam em ‘empresas altamente lucrativas’ que certamente sobreviverão à coletivização, enquanto outros se organizam em empresas que são ‘pobremente geridas ou enfrentam dificuldades recentes’, o que dá apelo à sindicalização entre os funcionários. A conclusão deste estudo, porém, é clara: ‘sindicatos provavelmente não afetam os negócios os fazendo se tornarem mais suscetíveis a fracasso ou mudança física, mesmo com o medo de muitos empregadores e empregados’.”

Em termos práticos: a união de funcionários torna a negociação entre empregado e empregador mais dura para os últimos por sair da individualidade e ir para o coletivo. Dados do US Bureau of Labor Statistics referentes a março de 2022 (página 13) apontavam que funcionários sindicalizados custavam ao empregador uma média de US$ 15 por hora a mais na compensação total.

Tabela comparativa do custo total de funcionários sindicalizados e não sindicalizados.
Imagem: US Bureau of Labor Statistics.

Não à toa, quase todos os alertas corporativos frente à nova onda de sindicalização defendem que acha mais vantajoso aos funcionários ter “a liberdade” de negociar direto com o patrão. Qualquer um que tenha tido um emprego na prática sabe o quanto há de ficção nesta frase, aquele elã lapidado por relações públicas para sugerir que falta de poder é, ao contrário, potência.

Embalados por esse discurso e com todo o histórico de empresas que lutaram (e falharam ou tiveram sucesso) contra sindicatos, a Big Tech montou uma estratégia dura para evitar que seus funcionários se organizassem. Os métodos para tanto são os mais variados. Não tem história melhor para começar essa parte do episódio do que a que descreve como Smalls, já citado desde o começo, foi demitido da Amazon. Abre aspas para a reportagem do New York Times: “Nos primeiros dias da pandemia, enquanto um trabalhador da Amazon chamado Christian Smalls planejava um pequeno protesto sobre condições de segurança no centro de distribuição em Nova York, a empresa rapidamente se mobilizou. A Amazon formou um time de reação envolvendo dez departamentos, incluindo seu Programa Global de Inteligência, um grupo de segurança que emprega muitos veteranos de guerra. A companhia indicou um ‘comandantes de incidentes’ e criou um ‘Livro de resposta a protestos’ e um ‘Livro de atividade de trabalho’ para evitar ‘disrupções de negócios’, segundo documentos revelados à Justiça. No fim das contas, existiam mais executivos — incluindo 11 vice-presidentes — que foram alertados sobre os protestos do que funcionários que apareceram. O conselheiro chefe da Amazon, ao descrever Smalls como ‘não esperto ou articulado’ em um e-mail erroneamente enviado a mais de mil pessoas, recomendou torná-lo o ‘rosto’ dos esforços para organizar trabalhadores. A empresa demitiu Smalls, dizendo que ele violou regras de quarentena ao participar do protesto.”

Segundo a legislação norte-americana, é ilegal demitir funcionários que estão tentando se organizar. “Mas a empresa vai achar um motivo para demitir o organizador. Eles sabem que é ilegal. Quando o caso é finalmente julgado, a empresa vai ser obrigada a recontratá-lo com multa retroativa, mas a reação será ‘bom, é o custo de fazer negócios’. E o benefício em médio prazo é que não existe sindicato”, explica Catherine Fisk, professora de direito trabalhista na Universidade de Berkley, em entrevista à CNBC. Smalls não foi o único funcionário se organizando que foi demitido pela Amazon, como mostra o jornal Washington Post.

A estratégia de “union-busting” (oi, Lu) da Amazon ficou explícita após a patetice de um consultor contratado pela empresa que enviou uma comunicação interna para jornalistas por acidente. No e-mail, funcionários da Amazon pedem que a consultoria crie uma narrativa segundo a qual a formação de sindicatos prejudicaria funcionários negros.

É comum que gigantes de tecnologia, como a já citada Amazon, Google e Apple, contratem consultorias especializadas em se infiltrar em sindicatos em formação para implodi-los. A Amazon contratou uma consultoria chamada Pinkerton para impedir a sindicalização da rede Whole Foods, que comprou em 2017 por US$ 13,7 bilhões, em 2020. Funcionou. O Google contratou uma consultoria anti-union chamada IRI Consultants e demitiu funcionários que chamaram atenção publicamente para o objetivo da contratação. Funcionários de uma operação do Google Fiber em Kansas City que anunciaram intenção de se organizarem foram obrigados a participar de reuniões com consultorias semelhantes onde ameaças de demissão eram repetidas. Já funcionários de lojas da Apple insatisfeitos com os aumentos de salários propostos pela empresa ouviram um sermão semelhante: “Nas reuniões, gerentes alertaram que sindicalização significa a perda de benefícios.”

No Brasil, o iFood contratou uma agência responsável por forjar uma campanha em que falsos entregadores atacavam novas lideranças sindicais. A excelente reportagem da jornalista Clarissa Levy na Agência Pública, em abril de 2022, traz prints medonhos demonstrando a tentativa da agência contratada pelo iFood de influenciar o debate público de forma a torná-lo mais favorável à gigante (praticamente um monopólio) de entregas de comida no Brasil. Um dos alvos da campanha foi Paulo Galo, a voz mais alta a se erguer como representante de entregadores que recebem trabalho por aplicativos. Preparado para a náusea? Diz um dos documentos: “Comentamos em publicações que falam do assunto, vamos em perfis que abordam o assunto e comentamos de forma indireta […], mas NUNCA assinado como iFood para que ninguém desconfie.” Em uma reunião para comentar os resultados da ação, uma das envolvidas crava e a Agência Pública tem o vídeo: “A gente matou o Galo.” Fact checking: Galo segue vivo tanto na vida como na relevância dentro do debate sobre entregadores.

A roupagem da Big Tech é moderna, mas não tem nada de inovador nas táticas descritas. É “union-busting” clássica, praticada há décadas com truculência, ameaças nem sempre veladas e muitas vezes numa zona legal cinzenta. É tudo que existe de mais velho nas relações trabalhistas. O ponto é que não basta gastar milhões de dólares para implodir esforços de sindicalização se a opinião pública não acompanha. Mas o discurso do empreendedorismo que permeou a ascensão da Big Tech e de plataformas de empregos precarizados tem várias manifestações, não apenas no delírio nuclear das histórias do LinkedIn. Junto ao esforço de truculência nos bastidores, campanhas de relações públicas ajudaram a transformar a sindicalização em algo indigno.

Tudo parecia ir bem. O plano estava funcionando. Até que um vírus, muito provavelmente saído de um mercado de Wuhan5, desengatilhou a maior pandemia do século.

Lembra que eu falei em duas perguntas fundamentais para este episódio? Vamos à segunda: por que funcionários se interessariam em se aliar a um sindicato? A gente já respondeu indiretamente aí em cima com os dados sobre os ganhos maiores de funcionários sindicalizados, mas aprofundemos.

De novo, reportagem da revista Time: “Durante o ápice de popularidade dos sindicatos nos EUA, a diferença de renda entre os mais ricos e os mais pobres diminuiu consideravelmente. ‘A única vez que os 10% mais pobres da população e os 10% mais ricos se aproximaram foi durante estes anos, em que os sindicatos operavam nas maiores empresas do mundo’, afirma Ileen DeVault, professora de história do trabalho da Universidade de Cornell. Conforme o movimento começou a cair nos anos 1980, a diferença na renda voltou a crescer. Hoje, ela está no seu ápice desde que o levantamento começou há mais de 50 anos, segundo dados do Census Bureau. Pesquisas mostram que US$ 50 trilhões migraram para os bolsos do 1% mais rico dos EUA, uma redistribuição de renda que apertou a classe média.”

Enquanto o mundo tentava se isolar em quarentena e milhões eram demitidos, quem teve uma melhor proteção de trabalho e renda? Reportagem do jornal britânico The Guardian, de abril de 2021, responde: “Evidências da pandemia sugerem que funcionários sindicalizados tiveram ambientes e condições de trabalho mais seguras que os não sindicalizados e o risco da covid-19 aumentou tanto o interesse em sindicalização como a propensão de se engajar em ações coletivas no trabalho, como participar de um protesto ou de uma greve.”

Gráfico comparativo da opinião pública dos Estados Unidos a respeito de grandes empresas e sindicatos.
Imagem: @aaronsojourner/Twitter.

Para voltar à metáfora anterior, sístole — agora, tudo indica que estamos passando por um novo ciclo graças à pandemia.

“A pandemia mudou fundamentalmente o cenário do trabalho ao dar aos empregados mais poderes frente a seus empregadores. É só uma questão se os sindicatos aproveitarão esse potencial de transformação que se abriu”, afirmou ao New York Times John Logan, professor de estudos sobre trabalho da Universidade Estadual de San Francisco. Porque muito dessa onda recente tem relação com a mudança da percepção do público. O sentimento público sobre sindicatos é o mais positivo e o sentimento público sobre grandes corporações é o mais negativo dos últimos 50 anos, segundo Aaron Sojouner, economista do trabalho do Upjohn Institute for Employment Research. Essa percepção se reflete na propensão a querer se filiar: “mais de metade dos norte-americanos agora diz que quer se unir a um sindicato, enquanto apenas 11% dos trabalhadores atualmente pertencem a um — majoritariamente porque as leis trabalhistas se mantêm favoráveis aos grandes negócios”, diz reportagem do Guardian. Segundo o Gallup, 68% dos norte-americanos aprovam sindicatos, o maior número desde o começo da década de 1980.

Gráfico de 1985 a 2020 da aprovação de sindicatos pela opinião pública dos norte-americanos.
Gráfico: Gallup/Reprodução.

Smalls, o “não esperto ou articulado” segundo um executivo da Amazon, foi capaz de liderar junto com o amigo Palmer a formação do primeiro sindicato dentro da gigante de e-commerce. Apple, Google, Activision, Uber e negócios não originalmente de tecnologia, como Starbucks, seguem o caminho. Há um ponto em comum entre todos estes: essas iniciativas de sucesso foram lideradas por pessoas independentes (ou seja, não ligadas aos sindicatos tradicionais) e que têm uma percepção mais ampla de “trabalhador” como todo e qualquer pessoa a ter trabalho pela empresa, não apenas quem trabalha no chão de fábrica ou na administração. Há outro detalhe a se observar: Jaz Brisack, responsável pelo primeiro sindicato do Starbucks, frequentou Oxford com uma bolsa American Rhodes. O N aqui é 1, mas mostra uma possível senda.

No caso da Amazon, meses antes da formação do primeiro sindicato, outro, no Alabama, foi rejeitado pelos trabalhadores de um centro de distribuição. Lá, quem liderou a tentativa foram sindicalistas profissionais, gente ligada aos sindicatos já estabelecidos. No centro de distribuição de Smalls e Palmer, a maioria da liderança era composta por funcionários. Os US$ 120 mil usados na coordenação foram obtidos em um financiamento coletivo. Em 2021, a Amazon gastou quase 40 vez mais só em consultorias anti-sindicatos nos EUA, segundo documentos obtidos pelo New York Times.

Gráfico mostrando a concentração de valor de mercado e receita das cinco maiores empresas dos Estados Unidos em relação ao S&P 500.
Gráfico: Bloomberg/Reprodução.

Por fim, o mercado global está passando por uma concentração altíssima, a maior dos últimos 30 anos, e a Big Tech é a grande responsável. Juntas, Microsoft, Apple, Amazon, Google e Facebook respondem por 21% da capitalização do S&P 500, que agrupa o valor de mercado das 500 maiores empresas dos Estados Unidos. Em 2000, auge da bolha da internet, as cinco maiores não chegaram a 19% do mercado total, segundo dados compilados pela Goldman Sachs e publicados pela Bloomberg.

Nenhuma sociedade passa incólume por esse nível de concentração. É de se esperar que repercussões aconteçam. Uma concentração tão grande motiva reações. Achar que tanta riqueza vá se concentrar em poucos players sem que o resto da sociedade reaja é um delírio. É sob esse prisma que deve ser entendido esse aumento no interesse pela sindicalização. Não há campanha de relações públicas e discursinho meritocrático lapidado no LinkedIn que seja capaz de maquiar as dificuldades práticas dessa concentração. Dito isso, estamos no começo de um movimento. Como bem lembra John Logan, pesquisador da Universidade Estadual de San Francisco, potencial é diferente de realização. A tendência de interesse e adesão é de crescimento tanto da opinião pública como dos funcionários. Se isso vai resultar em mais sindicatos e empregados sindicalizados é algo que acompanharemos.

Algumas empresas de tecnologia, porém, começaram a encarar o fenômeno como uma onda inevitável e vestiram suas boias de braço para não se afogarem. Em junho de 2022, a Microsoft anunciou que manteria sua neutralidade frente aos esforços dos funcionários da Activision para se organizarem 6. A barra é baixíssima, eu sei, mas o anúncio público, o primeiro do seu tipo, recebeu elogios até de organizadores sindicais. “A lei não exige que empregadores sejam neutros. Empregadores não apenas colocam o dedão na balança, mas pisam com um pé de chumbo”, disse à Fast Company Tom Smith, diretor de organização do sindicato Communications Workers of America. A ver ainda se Microsoft cumprirá a neutralidade e se encarar a ação como possível caminho é mais torcida que previsão. Se a coisa engrossar no mercado, outras empresas podem, tal qual a Microsoft, encarar como inevitável e poupar seus esforços.

Como isso influencia o Brasil mais diretamente? Ótima pergunta. Já falamos no Tecnocracia #59: no Brasil, Big Tech é sinônimo de filial que segue as regras locais para manter a operação, mas cujos nortes são definidos pelas sedes nos EUA ou Europa. Há um traço aqui que impacta o debate local: no Brasil, o sindicalismo se tornou muito associado a indústrias de transformação, principalmente metalurgia, depois que as greves do ABC nos anos 1980 introduziram à política nacional o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mencione o termo “sindicato” em qualquer churrasco e respire fundo para ser tragado a uma discussão política. O formular esse episódio me trouxe à cabeça algumas figuras nefastas que se apossaram do assunto para a política mais mesquinha. Todo movimento social tem figuras nefastas no meio, que se aproveitam da abertura para ganhos pessoais. Rejeitar a ideia ou mesmo colocar poréns é — como dizem por aí — jogar o bebê fora junto à água suja.

Polarização no escanteio, é fato que os sindicatos tiveram um papel fundamental pelos últimos séculos e continuam a ter na proteção de trabalhadores. Talvez você nunca tenha pensado nesse assunto que não sob o manto da polarização política. Tudo bem, é normal, estamos vivendo num período insuportável em que qualquer questão descamba para a política mais tóxica possível. Só que o assunto envolve você e, por isso, é preciso entendê-lo fora dessa polarização, talvez até, como mostra essa nova onda, pensando em novas formas de mobilização que não as cooptadas. Um bom ponto de partida é o texto que o jornalista German Lopez, do New York Times, escreveu na Vox sua jornada pessoal frente à sindicalização. Em três anos, ele partiu de fechar a cara para o assunto para defender que toda classe de trabalho precisa de um. “Conforme eu me aprofundava na pesquisa e me engajava em processos de organização e negociação, eu fui repetidamente sendo contradito, muito por que eu estava inicialmente focado nos exemplos ruins de sindicatos em vez dos bons. Quando você organiza a pesquisa e olha para o cenário completo, o efeito final dos sindicatos — exemplos ruins incluídos — é bom para o trabalho comum.”

Talvez esta nova onda seja fogo de palha. Com bolsos fundos, não parece difícil para a Big Tech explorar maneiras de desarticular as organizações. Mas talvez também o grande fiel da balança não seja medido apenas pelos novos sindicatos criados em empresas blindadas, as rachaduras na brilhante armadura trabalhista da Big Tech, mas na quantidade de gente comum, fora do mundo do sindicalismo, que começa a pensar sobre o assunto, sobre seus próprios interesses, sobre como arranjos de décadas não funcionam e como seria possível fazer novos. Isso se chama inovação. E, neste cenário, quem adotou a postura de manter tudo como sempre foi em nome do benefício próprio, é o mesmo grupo que há 20 anos se orgulha de ousar fazer o novo: a Big Tech.

Foto do topo: Pamela Drew/Flickr.

  1. Eu sei, essa ainda é uma visão anos 2000 do jornalismo, quando jornais: 1) ainda tinham caderno de informática; e 2) ainda fazia sentido separar jornais de papel em cadernos. Eu sou velho, me dá licença…
  2. Aliás, material complementar do episódio: ouça a entrevista que o Galo deu ao Podpah.
  3. O livro está disponível na íntegra no Gutenberg Project.
  4. O livro também está disponível na íntegra no Gutenberg Project.
  5. Vamos ferver esse morcego antes de dar uma mordida, galera!
  6. A Microsoft comprou a Activision em janeiro de 2022 por US$ 68,7 bilhões.

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1 comentário

  1. Mais um excelente Tecnocracia Felliti. Enviei seu texto ao meu pai, que durante 15 ou 20 anos foi o responsável pelo departamento de pessoal, e por tabela, o relacionamento com o sindicado em uma grande estatal. Inclusive, as relações sindicais foram o tema do mestrado dele na década de 90. Ele gostou muito de seu artigo e o considera uma leitura essencial, em especial para os atuais dirigentes sindicais.