Em 1902, um sujeito chamado Henry Ford ganhou o famoso bilhete azul da empresa que ele mesmo havia fundado no ano anterior. A Henry Ford Company era a segunda tentativa do jovem engenheiro, então com 39 anos, de estabelecer um negócio de sucesso para desenvolver e vender uma tecnologia ainda nascente: o carro.
Ford tinha essa obsessão desde que, ao assumir a função de chefe de engenharia da Edison Illuminating Company of Detroit, a empresa de iluminação de Thomas Edison, começou a estudar motores a combustão. Naquela época, motores eram movidos a vapor, o que os tornava excessivamente grandes e lentos. Tal qual a chaleira onde você prepara seu chá antes de dormir, o boiler de uma caldeira demorava 30 minutos para aquecer antes que os pistões começassem a funcionar e empurrar o trem adiante, por exemplo. O motor a explosão não tinha essa questão.
Nessa obsessão, Ford criou pouco antes da virada do século seu primeiro protótipo de veículo, uma espécie de charrete com quatro pneus de bicicleta e um motor a combustão que não raramente parava de funcionar por superaquecimento. Era o Ford Quadricycle. Tal qual quase toda nova tecnologia, essa pegava emprestado conceitos de tecnologias mais antigas — o frame do quadriciclo era um de charrete e os carros da época eram chamados de “carruagens sem cavalo”.
Ford tinha 32 anos quando mostrou o quadriciclo a alguns dos principais empresários de Detroit e ganhou apoio suficiente para montar sua primeira empresa. A Detroit Automobile Company foi formada em 1899 com um aporte inicial de US$ 15 mil (o equivalente a quase meio milhão de dólares atuais). Ou seja: pouca grana. A ideia de Ford era transformar o quadriciclo em um carro de entregas. Empresas de todo tamanho teriam interesse em comprar um para substituir os cavalos e carruagens usados para levar produtos. Os problemas começaram a aparecer quando Ford peitou os investidores para tornar o projeto perfeito, o que acabou atrasando o pagamento e enfurecendo quem colocou grana na empresa1. O carro de entregas ficou pronto um ano depois e foi um fracasso retumbante: os jornais falaram bem, mas não chegou perto de vender o que se esperava dele, o que levou os investidores a dissolverem a Detroit Automobile Company e, dos seus espólios, criarem a tal Henry Ford Company do começo do episódio.
De novo, a empresa capitaneada pelo Ford durou pouco mais de um ano. Ele queria investir, agora, em carros de corrida — na época, já tinha produzido um protótipo chamado de Ford 999. Um consultor trazido pelos investidores negou o novo plano e convenceu-os a manter o original de Ford, mas só depois de livrar-se dele. Oitenta anos antes de Steve Jobs ser demitido da empresa que criou, Henry Ford também o foi. No acordo demissionário, Ford ficou com o próprio nome e cerca de mil dólares. A empresa teve, então, que mudar de novo. Virou a Cadillac.
Aos 39 anos, brigado com investidores poderosos e com uns trocados no bolso, Henry Ford teria que recomeçar mais uma vez. Em 1903, fundou sua terceira empresa: a Ford Motor Company e, a esta altura, você já entendeu que não teve uma quarta empresa. Na nova, Ford tirou o foco de veículos para entregas e corridas e decidiu fazer um carro para o homem comum, para o uso diário. A desconfiança era tanta que Ford precisou levantar capital de 12 investidores e o primeiro CEO da Ford Motor não foi ele, mas um banqueiro que funcionaria de bedel e daria segurança aos investidores. Foi esse modelo que abriu o caminho para que uma tecnologia ditasse a forma como vivemos até hoje. Olhe ao seu redor: são poucas as tecnologias que moldaram tanto o seu dia a dia, a forma como você se locomove, onde você mora, como centenas de milhões de pessoas ganham dinheiro como o automóvel. Nos últimos 70 anos, o carro norteou a organização das cidades e virou uma base sólida da economia global.
No segundo episódio da terceira temporada do Tecnocracia, a gente vai mostrar como uma tecnologia é capaz de mudar uma sociedade e ter impactos gigantescos e duradouros ainda que seus pioneiros não estejam bem das pernas ou nem estejam mais no setor. A história do automóvel é um bom exemplo para termos em mente quando olharmos para o futuro que a dominação da Big Tech nos reserva.
A linha de montagem
Quando sua primeira empresa quebrou, Henry Ford aprendeu que não adianta ter o melhor projeto de carro se os fornecedores não conseguirem acompanhar a demanda. A Detroit Automobile Company era obrigada a ficar dias parada.
Na nova empresa, Ford fechou contratos com empresas da região de Detroit para garantir o fornecimento ininterrupto de peças — uma das principais, que fornecia motores e chassis e virou acionista da Ford Motor, era de dois irmãos chamados Horace e John Dodge, a Dodge Brother Company, que depois virou a montadora Dodge.
O primeiro veículo da Ford Motor foi o Model A, lançado em 1903. Pelos cinco anos seguintes, a empresa foi iterando o alfabeto e lançando novos Models — o B, o C, o F, o K, o N, o R e o S. Mesmo com os contratos de fornecimentos de peças, a produção era lenta. Cada veículo envolvia três profissionais por vez — sempre que um precisava de uma peça, era preciso caminhar até o estoque para pegar. Eram preciso mais de 12 horas para produzir um carro inteiro.
Uma ideia, no entanto, estava começando a crescer dentro da Ford. Ao visitar um matadouro em Detroit, um dos executivos da empresa presenciou como uma esteira móvel conduzia a carcaça para que dezenas de funcionários a desmontassem. Quem andava não era o funcionário, mas o corpo do animal. O executivo, chamado William Klann, levou a ideia a Henry, que começou a testá-la de modo reverso — uma esteira onde mecânicos construíam em vez de depenar a carcaça. É o que a gente chama hoje de linha de montagem. A Ford introduziu a linha de montagem aos poucos. Em 1906, a produção do Model N, uma espécie de carro de baixo custo da Ford, aumentou em mais de cinco vezes. O maior beneficiado pelo sistema seria lançado em 1908: Model T trazia algumas inovações como o bloco de motor produzido em uma única peça e o uso de ferrovanadium, uma liga metálica mais leve e resistente que a usada até então.
Só em 1913 a Ford colocou para funcionar uma linha de produção completa. Esse foi o pulo do gato da Ford. Henry Ford não inventou o carro — cem anos antes do seu nascimento já existia gente brincando com o conceito de uma carruagem movida por um motor a vapor em vez de cavalos. O Model T também introduziu algumas inovações que duram até hoje, mas a alta demanda não adiantaria de nada se a Ford não conseguisse produzir carros em alta velocidade para suprir aquela demanda. O modelo praticado até então envolvia milhares de pequenos estúdios em que poucos funcionários faziam, com pouca automação, todo o veículo. Nessa abordagem a conta-gotas, não tinha jeito.
Ao introduzir uma esteira na qual a carcaça do carro se movimentava da inserção do motor à pintura2, padronizar as peças e dar apenas uma tarefa aos funcionários (que antes construíam o carro todo em pequenos grupos), Henry Ford derrubou o tempo necessário para montar um veículo de 12 horas para 1h30. Com os benefícios da economia de escala, o preço de produção caiu conforme mais o Model T vendia, o que motivou Ford a baixar o preço do Model T, o que resultou em mais pedidos. Criou-se um círculo virtuoso que fez a Ford dominar o mercado automotivo. Entre 1910 e 1916, a produção da montadora passou de 20 mil para 585 mil carros anuais.
Em outras palavras: Ford encontrou um jeito de levar uma tecnologia para as massas e, como consequência, impactou diretamente a forma como a sociedade se organiza. Não apenas porque a linha de montagem continua a ser usada até hoje, mais de cem anos depois, para produzir itens tão diferentes como smartphones e aviões de carga, como também pelas adaptações pelas quais uma sociedade vidrada em automóveis passou nas décadas seguintes.
A era dos subúrbios
Como se organiza uma cidade? Primordialmente, a cidade deve aproximar seus cidadãos.
Quem já caminhou por uma rua na Europa (talvez a frase mais blasé da história do Tecnocracia) deve ter notado uma diferença em relação às cidades brasileiras ou norte-americanas: o centro da cidade continua um lugar ativo e altamente povoado. Nos Estados Unidos, a grande cidade mais populosa é Los Angeles, onde cada quilômetro quadrado abriga uma média de 2,4 mil pessoas. Na Europa, a média é bem maior: Milão tem 2,8 mil, Berlim, 3 mil, Roma, 3,4 mil, Paris, 3,9 mil, Madrid 4,7 mil e Londres, 5,8 mil (bem mais que o dobro de Los Angeles). Os dados são do Observatório Urbano Global do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos, o UN Habitat.
Vale abrir parênteses para uma ressalva sobre rankings do tipo para não compararmos banana com tomate. No Brasil, São Paulo, a líder em densidade populacional, tem 7,1 mil pessoas por quilômetro quadrado. Se você puxar a lista do UN Habitat completa ou a lista das cidades com a maior densidade populacional do mundo, você vai entender como cidades ou países em desenvolvimento puxam a fila da densidade, que é uma outra forma de falar que a pobreza tem uma participação relevante nos dados brutos. No ranking das cidades, por exemplo, a primeira do mundo desenvolvido aparece só na nona posição, que é Bnei Brak em Israel, um país pouco maior que Sergipe, o menor estado brasileiro. Qualquer um que more numa cidade brasileira e veja a quantidade de favelas e cortiços entende a razão. Para o episódio, a gente vai deixar de lado essa discussão para se focar na comparação entre cidades desenvolvidas.

Essas grandes cidades europeias já estavam em processo de formação séculos antes da Pinta, da Nina e da Santa Maria atracarem em San Salvador, nas atuais Bahamas. No século XIV, por exemplo, Paris já tinha cerca de 200 mil habitantes, enquanto Estados Unidos e Brasil nem existiam como nações. Essa população toda só conseguia se movimentar internamente usando pés: os seus ou os dos animais de tração, como cavalos e burros. A limitação moldou a organização das cidades — o centro era reservado aos mais ricos, enquanto os pobres tinham que andar mais (uma dinâmica que acontece, mais ou menos, hoje também). Tem um outro traço aqui curioso que segue a mesma lógica: os imóveis mais luxuosos de prédios eram sempre os dos andares baixos — mais barulho, sim, mas também menos degraus para os poderosos da época subirem diariamente. A coisa só mudou a partir de 1853, quando um sujeito chamado Elisha Otis demonstrou como era seguro levar pessoas dezenas de metros acima do solo usando uma plataforma com cordas, roldanas e, principalmente, um sistema de segurança que evitava acidentes. Nasceu ali o elevador.
Por séculos, as grandes cidades do mundo (majoritariamente na Europa e na Ásia) se organizaram a partir das tecnologias disponíveis. Essa organização está sujeita a mudanças com a introdução de novas tecnologias. O elevador, como se sabe, transformou o topo do prédio na área mais nobre. “Você tinha o sótão e os quartos dos empregados”, mas, quando o elevador apareceu, os espaços foram substituídos “pelas coberturas, o jardim suspenso e a suíte do executivo chefe”, segundo o acadêmico alemão Andreas Bernard, autor de Lifted: A cultural history of the elevator (sem tradução no Brasil).
O mesmo aconteceu com o motor a vapor: a partir do começo do século XIX, as locomotivas permitiram que pessoas pudessem trabalhar no centro da cidade e pegar o trem para viver em casarões arejados longe dali. As ferrovias eram ainda restritas à pequena parte da população que tinha muito dinheiro. Para a alegria do Arcade Fire, o conceito de subúrbio começou a ganhar popularidade (hehehe, piadinha indie) — uma região mais afastada do trabalho onde moram os trabalhadores. A locomotiva a vapor criou os chamados “Railroad suburbs”, bolsões de riquezas espalhados ao longo da ferrovia. Quando o motor a tração elétrica chegou, um público um pouco menos abastado conseguiu andar de bonde e criar raízes ainda mais afastado do centro, onde a maioria trabalhava. O limite, porém, era a distância a pé da estação de bonde mais próxima. Ainda havia grandes áreas descampadas de difícil acesso.
Aí é que Henry Ford volta à história. Com a linha de produção, a Ford tinha capacidade de vender veículos para a multidão enquanto sofria a competição de outras duas grandes montadoras de Detroit: a General Motors e a Cadillac. Juntas, as três eram as mais importantes empresas do setor. Com carros disponíveis para um estrato maior da população, aquelas grandes áreas descampadas não são mais inatingíveis. Ao aproveitar o tamanho territorial dos EUA e, no pós-Segunda Guerra Mundial, os investimentos imobiliários do governo para acelerar a economia depois de anos duros, o subúrbio sofreu um “boom”, tendo o carro como principal condutor (pun intended). Começa aí um processo lento de espalhamento da cidade para longe do centro, que começa a deteriorar, em voga até hoje. Os impactos do carro no planejamento urbano não se resumem aos indiretos, como o fortalecimento do subúrbio. Existem também os efeitos diretos.
Com o carro transformado em produto de consumo de massa, as montadoras, lideradas pela Big Three, viraram algumas das maiores empresas do mundo. A fabricação de automóveis se tornou o maior segmento da indústria dos EUA e um dos maiores do mundo. Uma coisa que você aprende ao cobrir economia por quase 15 anos é que tanto tamanho e poder de mercado se faz ouvir na mesa de negociação com o poder público. E as montadoras foram ouvidas.
A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, grandes cidades, principalmente na América, passaram por um “boom” urbanístico, com uma forte migração do campo para as cidades e investimentos pesados em infraestrutura. Com os interesses das montadoras ditando no ouvido dos governos, o planejamento urbano acabou adotando o que o urbanismo chama de “automotive city”: o automóvel como protagonista no planejamento das cidades.
Isso obrigou a reconstrução de partes da cidade para acomodar o crescente número de veículos. “Motoristas chegaram nas ruas das cidades norte-americanas como intrusos e tiveram que lutar para ganhar um espaço de direito lá. Eles e seus aliados lutaram suas batalhas em legislaturas, tribunais, editoriais nos jornais, escritórios de engenharia, salas de aula e nas próprias ruas. Motoristas que se aventuraram nas ruas no primeiro quarto do século XX deveriam se adaptar ao que as ruas eram: um lugar primordialmente para pedestres, veículos conduzidos por cavalos e bondes. Mas, a partir de 1920, motoristas rejeitaram tais limitações e começaram a lutar por um novo tipo de cidade — um lugar primordialmente para veículos. Com seu sucesso, surgiu um novo tipo de cidade — uma cidade que se adapta às necessidades dos motoristas. Ainda que a maioria das famílias ainda não tivesse um carro, as montadoras estavam confiantes que poderiam criar espaço para o tráfego de motores nas cidades. O carro já tinha limpado sua reputação, uma vez sangrenta, nas cidades menos pela diminuição nas mortes do que por convocar outros para compartilhar a responsabilidade do massacre. Engenheiros disseram que poderiam construir cidades para acomodar carros, e eles já estavam mostrando progresso. Nas quatro décadas seguintes, problemas de transporte urbano foram tratados como tarefas para engenheiros de rodovias e, até os anos 1960, entre todas as necessidades de transporte público, políticas estaduais e federais reconheceram praticamente apenas projetos de ruas e avenidas como responsabilidade públicas”, um resumo impecável escrito pelo historiador da Universidade da Virgínia Peter Norton, no livro Fighting traffic: The dawn of the motor age in the american city (sem tradução no Brasil).
Em outras palavras: a inovação, sozinha, não moldou a sociedade — o lobby e a lei fizeram muito do trabalho pesado de priorizar o automóvel nas cidades modernas. Um exemplo prático: lá por 1910, as ruas eram espaços em que bondes, pessoas e carruagens dividiam espaço. Ruas eram espaços públicos. Com a popularização dos carros, aumentou também os atropelamentos, principalmente de crianças e idosos. O carro passou a ser visto como uma máquina de morte, como mostra uma capa do New York Times em 1924 com a ilustração de uma caveira dirigindo um carro gigante que passa por cima de crianças. A partir daí, a indústria se mobilizou para passar leis que responsabilizassem outra parte da equação: o pedestre. Miller McClintock, o sujeito apontado pela cidade de Los Angeles para resolver a questão, foi direto: “a lei antiga que cada pessoa a pé ou dirigindo tem direitos iguais em todas as partes da rua deve mudar frente aos requerimentos do transporte moderno”. A rua tinha um novo dono. Nasceu o crime de “jaywalking”: andar no meio da rua, o padrão antes da popularização do carro virou crime. É até hoje, com multa de até US$ 250. O próprio historiador Norton tem um artigo sobre jaywalking que vale a pena ser lido.

Há outro fator a se considerar aqui que firma a inércia e dificulta grandes mudanças: o carro só se popularizou com a ajuda de outras indústrias que se tornaram muito relevantes à economia. Veículos precisam de chassis de ligas metálicas, o que torna as siderúrgicas fundamentais. Veículos também precisam de combustível, o que também torna as petrolíferas fundamentais. Existe todo um ecossistema econômico ao redor do carro que movimenta trilhões de dólares por ano e emprega centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo: além das montadoras você tem a cadeia das siderúrgicas, do sujeito que opera a máquina que extrai minério ao executivo de vendas, a cadeia petroquímica, do engenheiro que trabalha duas semanas seguidas na plataforma de extração em alto mar ao frentista que abastece seu carro e dá uma olhada no nível do óleo, chefia, os fabricantes de pneus, extintores de incêndio e vidros, do motorista do cegonha ao sujeito que arma o bonecão de posto na porta das concessionárias e das revendas de usados, milhares de oficinas mecânicas, borracharias e lava-jatos, as locadoras de veículos, os desmanches, as divisões dos bancos dedicadas ao financiamento automotivo, as seguradoras que vendem planos para cobrir desgraças, as empresas de reparo de ruas e avenidas que prefeituras contratam para tapar buracos, as concessões de rodovias estaduais e federais, os incontáveis quilômetros quadrados de espaço reservado para estacionar, a mídia especializada que recebe veículos antes do lançamento para analisar, os publicitários que criam os anúncios com aqueles carros reluzentes fazendo curvas em ruas vazias inverossímeis que você no intervalo dos jogos, até os guardadores de carros nas ruas… Recentemente, essa teia ganhou mais um componente: serviços de transporte por aplicativo, como a Uber.
Essa rede de interdependência significa que para mover um você precisa mover todos os outros. Tal qual uma manada de elefantes, a teia usará seu peso para ficar parada onde sempre esteve.
Brasil: o carro no altar

O Brasil seguiu esse caminho da roça todo. Desde que Santos Dumont trouxe o primeiro veículo a rodar por aqui, o Brasil importou carros de montadoras como Ford e GM até que Juscelino Kubitschek proibiu a importação de peças automotivas e carros inteiros, uma tentativa de estabelecer uma indústria nacional. Funcionou. A partir de 1955, com a fabricação local do Romi-Isetta, um carro que parece saído de um show de palhaços, grandes montadoras estrangeiras, como Volkswagen, Ford e GM, e pequenas montadoras locais, como a Indústria Romi e a Vemag, montaram fábricas. Aquela foto clássica do JK num Fusca saindo da fábrica foi tirada no fim de 1959, quando a Volkswagen começou a produzir localmente o Fusca, chamado na época de “Volkswagen Sedan”. O evento marcou a “inauguração” da fábrica local, que já operava há quase dois anos. A política no Brasil não mudou nada.
Segue uma história parecida com a norte-americana: o Brasil passa por um “boom” de urbanização motivada pela migração em massa de milhões de pessoas do campo para as cidades. Dentro daquela visão para “modernizar” o país, JK investe pesado em infraestrutura logística rodoviária enquanto deixa de lado outros modais, principalmente o ferroviário e o fluvial. As grandes cidades brasileiras adotaram o modelo de “automotive city”, em vigor até hoje. O melhor exemplo dessa guinada é São Paulo, uma cidade inspirada pela Europa com jardins, alamedas e fontes até a Segunda Guerra Mundial. A partir do fim da guerra, a cidade passou a se espelhar no modelo urbanístico norte-americano.
Desde então, o carro virou não apenas o principal meio de transporte no Brasil, como também se transformou no deus de uma nova religião.
Pare onde você estiver ouvindo esse programa e olhe ao redor, nem que seja pela janela de casa (o prato ensaboado pode esperar, bonitinho e bonitinha). Veja a quantidade de espaço que a infra-estrutura dedicada ao carro ocupa: ruas, avenidas, estacionamentos. Lembre-se de quando a discussão sobre ciclovias e bicicleta, um método de transporte cogitado desde o século XVI e introduzido há mais de 200 anos na França, foi politizada. Rememore também quando a construção de corredores de ônibus gerou protestos por donos/as de carros reclamando que não teriam espaço nas ruas (o ruim de ter tudo para si é que, quando começa a distribuir igualitariamente um bem público, a galera acha que está sendo oprimida). Lembre também quando um/a ciclista é atropelado/a e ouve-se o discurso de “mas ele estava na rua”, quando o artigo 58 do Código de Trânsito Brasileiro trata a bicicleta como qualquer outro veículo e, por isso, deve usar ruas.
A gente mora em cidades que são regidas por isso desde sempre. Independente se você tem 60 ou 19 anos, foi nesse modelo de cidade que você morou sua vida toda. Ao não conhecer outro jeito de viver (ou só presenciar quando viajamos), a gente normaliza alguns hábitos horrendos. Por exemplo: o trânsito é de uma violência inacreditável que a gente normalizou. Não é normal que o transporte mate uma pessoa a cada 15 minutos. Não é normal ficar, diariamente, até 2 horas parado entre dezenas de outros desconhecidos já que a rede viária não suporta o tanto de gente que resolveu ter o próprio carro. Não é normal entrar num financiamento que vai se arrastar por anos e anos para ter um bem usado algumas vezes por semana e que, ao sair da concessionária, já perdeu de 30% a 40% do valor. Não é normal gastar R$ 15 reais por hora para deixar o carro parado enquanto você vai fazer alguma coisa. Você só percebe esses absurdos — de vida, tempo, saúde mental e financeiro — quando dá um passo para trás. Há alguns anos a bicicleta é meu principal meio de transporte. Eu gasto menos, o índice de gordura no meu fígado zerou e, pela primeira vez na vida, eu consigo me programar sem depender dos humores do trânsito. Eu sei, eu sei: não é para todo mundo, mas é para muita gente que continua hipnotizado na crença que só carro é sinônimo de locomoção. O Ghedin escreveu sobre o processo de livrar-se do carro próprio aqui no Manual — pode servir de inspiração caso você esteja interessado(a) em dar o mesmo salto.
Em São Paulo, por exemplo, estacionamentos ocupam 2.053 quilômetros quadrados da cidade, segundo dados do IPTU. A área é pouco menor do que todo o município de Cascavel (PR), que tem 2.100 km2. Para uma comparação ainda mais clara: o Parque do Ibirapuera tem 1,6 km2. São quase 1,3 mil Parques do Ibirapuera espalhados em subsolos, terrenos e prédios pela cidade, tudo dedicado ao carro.
Ao virar um símbolo de status e sinônimo de transporte, o carro se ligou umbilicalmente à economia brasileira. Nas últimas décadas, sempre que o PIB nacional ameaçou desacelerar, o governo, independentemente da matriz ideológica, diminuiu imposto que incide sobre automóveis e caminhões para estimular a economia. FHC fez, Lula fez, Dilma fez, Temer fez, Bolsonaro fez3 . Fora a ajuda indireta do governo com a isenção de IPI, as montadoras ganham ajudas diretas: entre 2008 e 2019, montadoras foram beneficiadas com mais de R$ 34,6 bilhões em isenções fiscais (imposto que o governo decide não arrecadar). Só em 2019, foram R$ 7,2 bilhões, valor três vezes maior que o previsto e o maior da história. Governos usam benefícios fiscais para atrair montadoras para suas jurisdições e, caso o plano dê certo, colher capital político pelos milhares de empregos gerados.
“Tá bom, Guilherme, excelente, muito legal, mas que diabos isso tem a ver com tecnologia?”. Muito. No centro desse estilo de vida está uma inovação massificada há mais de um século. Lembremos que a linha de montagem do Ford, que permitiu essa penetração do carro nas nossas vidas, aconteceu em 1913. A organização das cidades onde a gente vive hoje é consequência direta daquela esteira. Hoje a gente acha normal algumas limitações e escolhas impostas pelo produto daquele processo fabril. A Big Three original do mercado automotivo — Ford, General Motors e Cadillac — continua ativa, mas perdeu há tempos seu poder de mercado e elã de inovação. A decadência de Detroit, espécie de Vale do Silício do mercado automotivo durante décadas, é um testamento à mudança, provocada pela ascensão de montadoras asiáticas. Qualquer conversa sobre o futuro do mercado automotivo que não tenha a Tesla com um papel de destaque é um delírio, ainda que, claramente, exista uma supervalorização no seu market cap atual4 .
O ponto é que os efeitos das decisões tomadas ao fim da Segunda Guerra Mundial continuam ativos, ainda que muitas das proponentes não estejam em seus melhores dias. A gente não viu a era de ouro das montadoras e, ainda assim, vivemos suas consequências. O legado é forte e não vai ser desmontado da noite para o dia. Hoje, tem ganhado força no urbanismo movimentos que propõem “recuperar” a cidade dos carros e combater muitos dos malefícios consequentes das “automotives city”. Cidades como Lyon, na França, Helsinki, na Finlândia, e Portland, nos EUA, transformaram ruas em espaços exclusivos para pedestres e investiram em ciclovias e transporte público, sempre com resultados animadores.
Está cada vez mais claro que a cidade do futuro não tem o carro como ponto central5. Muitas das piores consequências desse modelo só ficaram claras décadas depois da execução: o impacto na saúde mental, como a violência do trânsito mata muito e custa aos sistemas de saúde, a emissão de gases nocivos ao meio-ambiente, as poluições (do ar, visual e sonora)…
Poucas empresas ganharam muito dinheiro enquanto bilhões de pessoas tiveram que lidar com as tecnologias vendidas — e as consequentes limitações impostas — por esse grupo. Te lembra alguém?
A Big Tech de hoje tem um papel semelhante ao das montadoras no começo do século passado: donas de produtos inovadores adotados em massa pela sociedade, elas cresceram de tamanho e se sentaram à mesa da regulação, ajudando a moldar diretrizes e projetos de lei que as beneficiarão e impactarão diretamente a forma como vivemos. Ainda que Facebook, Google, Twitter, Amazon e afins percam valor de mercado, lucratividade e parem de inovar (nada indica que isso acontecerá em curto prazo), a tecnologia nas quais elas foram pioneiras continuará a evoluir e fazer cada vez mais parte das nossas vidas.
Assim como a Big Three automotiva, a Big Tech vai dominar o mercado global durante décadas e muitas das decisões tomadas pelo seu poder de mercado terão repercussões de longuíssimo prazo. Seres humanos são ruins para pensar a longo prazo. Ali pelas décadas de 1960 e 1970, havia a expectativa de que, com o carro tornado um produto de massa, o próximo passo seriam os carros voadores, uma visão alimentada pela ficção científica da época. Nunca rolou e hoje a gente sabe que vai demorar. Enquanto esperávamos pelos Jetsons, acabamos com cidades brutais para pedestres, com um trânsito que mata uma pessoa a cada 15 minutos, atinge a sanidade mental de milhões e agride o meio-ambiente. Da mesma forma, a sociedade em que seus filhos/as e netos/as viverão continuará profundamente moldada pela ascensão dessa tecnologia — que você presenciou desde a última década. Não precisou de 50 anos para entendermos as consequências ruins da Big Tech, muito embora o tempo deverá nos apresentar novas. A história do carro é um lembrete de como a introdução de tecnologias altera a sociedade por prazo indeterminado. É nesse jogo em que estamos e, provavelmente, dessa vez deverá ter consequências piores do que criminalizar quem anda no meio da rua.
Foto do topo: Henrique Boney/Wikimedia Commons.
- Está achando que só empreendedor novo se dá mal na mão de investidor que só quer reparte rápido de lucros? Henry Ford já estava se dando mal há mais de um século. ↩
- Inúmeros outros negócios já usavam uma esteira do tipo, como o já citado matadouro, moinhos e padarias industriais. ↩
- Muito embora a ação de Bolsonaro pareça mais preocupada com sua base de sustentação do que com a economia. ↩
- Se você quiser se aprofundar, a Netflix tem um documentário que fala sobre a decadência de Detroit e como a indústria asiática se apoderou. É o Indústria americana, produzido pelos Obamas e vencedor do Oscar de melhor documentário. ↩
- Por isso eu olho com desconfiança as teorias de que a direção autônoma é o futuro do transporte. ↩
A divisão de trabalho, também conhecida como linha de montagem, já tinha sido estudada por Adam Smith. Ford adaptou muito bem a produção de automoveis e deu-se muito bem justamente ao vender carro “barato” para as massas.
A se notar também que as grandes automotivas hoje são associadas as grandes de tecnologia. A ideia do carro autônomo, a mudança da forma de ofertar o automóvel como serviço ao invés de como produto, a oferta de serviços integrados (monitoria GPS, “conscierge’…)
Ao mesmo tempo que as automotivas que antes domavam o mercado e hoje perderam força, hoje elas tentam se reinventar com as big techs, tentando somar forças e darem seus últimos esforços para manter seu poder.
Texto sensacional !!!
Mais um belo Pod.
Não sei se conhece ou acompanhar no Instagram ou Twitter o economista Leonardo Siqueira, ele cria vários “fios” com a explicação de como estas grandes empresas/políticos ditam as regras do jogo e através de subsídios deturpam a relação Estado/Capital.
Sobre a Ford sair do pais.
https://www.instagram.com/p/CJ9FVwohE4u/
Sobre benesses para uma classe específica coisa que se replica diuturnamente.
https://www.instagram.com/p/CK4ZvUBhG89/
As big techs vão no mesmo caminho!