Aquela série marxista da Apple

Homem de perfil, branco, cabelo curto e liso, sentado à frente de um computador com aspecto antigo, entre divisórias de escritório verdes, com luzes artificiais no teto.

A série Ruptura (Severance, no original), do Apple TV+, é aquele tipo de entretenimento cheio de referências a temas profundos destiladas em obviedades. Não à toa (e, claro, não apenas por isso) ela esteja fazendo tanto sucesso.

Mesmo alguém não entendido (eu) em teoria marxista consegue sacar tal influência na história. Não tanto por mérito do espectador. É que Ruptura meio que esfrega isso na nossa cara: o trabalho é repetitivo, misterioso e ninguém ali consegue ver seu resultado ou mesmo saber para que ele serve, e os funcionários abrem mão da sua autonomia de um modo que os donos do capital só podem sonhar hoje em dia. É praticamente uma introdução à teoria da alienação de Karl Marx.

Aos não iniciados, em Ruptura (a série) uma mega-corporação, as Indústrias Lumon, desenvolveu um implante cerebral capaz de dividir a consciência de alguém em duas: uma exclusiva para o trabalho e outra para todo o resto. Quem passa pelo procedimento meio que vira duas pessoas, às quais todos se referem como “internos” (trabalhadores) e “externos” (livres).

A novidade é vendida como o futuro do trabalho (e algumas outras situações chatas), uma saída fácil e conveniente para possibilitar a utópica separação entre “vida real” e “vida profissional”, ali levada ao extremo: ao descer o elevador subterrâneo da Lumon, os funcionários simplesmente trocam de personalidade e apagam da cabeça qualquer lembrança de fora da empresa, e vice-versa.

Mark S., o protagonista interpretado por Adam Scott, voluntariou-se à ruptura após perder sua esposa em um acidente de carro e despirocar na universidade onde lecionava. Foi a saída que encontrou para mitigar a dor (ao menos no horário comercial) e voltar ao mercado.

Óbvio que esse arranjo não funciona por muito tempo. Dois eventos interligados desencadeiam as desconfianças e fazem a história avançar: a chegada de Helly R. (Britt Lower), que desde o primeiro minuto detesta a vida de “interna” e faz o possível para escapar da Lumon após Petey (Yul Vazquez), ex-chefe de Mark, demitido e “reintegrado” (ou seja, ele reverteu a ruptura), ir atrás do Mark “externo”, para quem Petey é um completo estranho.

Nesse caminho, Mark e seus colegas começam a descobrir o sistema desumano a que se submeteram, a corrupção generalizada nas entranhas da Lumon e que o céu é azul. (Poderia ser só uma piada, mas considerando que os “internos” jamais saem ao ar livre… talvez não?)

A sala da divisão de refinamento de macrodados, onde os quatro personagens principais trabalham, lembra um escritório típico norte-americano de filmes dos anos 1980 — até os computadores, com suas telas CRT monocromáticas com teclado e trackball integrados.

Quatro pessoas (três homens e uma mulher), com roupas formais/de escritório, sentados ou encostados em mesas de escritório separadas por divisórias verdes, em um ambiente de escritório com estilo antigo, carpete verde e luzes artificiais no teto. À esquerda, de pé, um homem preto, também com roupas formais, supervisiona o grupo.
Imagem: Apple/Divulgação.

A estética desse ambiente é um show à parte. E apesar do estranhamento visual, do anacronismo — que se faz evidente nas cenas externas, fora do escritório caricato e dos corredores labirínticos da Lumon —, o tratamento dispensado aos funcionários é reconhecível por qualquer um que já tenha trabalhado num escritório, talvez só um pouco mais escrachado. Dos “incentivos” patéticos (embora a cena do “jazz insinuante” seja bem divertida) à burocracia burra, passando pela ingerência obsessiva dos funcionários, está tudo ali.

Nesse sentido, Ruptura talvez seja a melhor piada que o comediante Ben Stiller, diretor e produtor executivo, já contou: a série é uma auto-paródia da Apple, que a publica em seu serviço de streaming. A Apple, lembremos, empresa construiu uma sede de US$ 5 bilhões onde funcionários trombam em paredes de vidro não sinalizadas porque assim é ~aesthetics e impõe barreiras ao home office apesar do aumento da produtividade e na qualidade de vida dos funcionários, ambos constatados durante a pandemia.

Que Ruptura seja transmitido pela Apple é, ao mesmo tempo, uma fina ironia e uma declaração da vitória esmagadora da lógica capitalista sobre outras formas de pensar, uma lógica capaz de engolir tudo, até mesmo as críticas mais contundentes, e regurgitar um produto sofisticado com uma etiqueta de preço colada.

No universo de Ruptura, a série Ruptura poderia muito bem ser veiculada num streaming da Lumon. Até um proto-Steve Jobs eles têm: o espírito de Kier Eagan, o adorado fundador, se faz presente o tempo todo como um guia e uma inspiração aos obedientes funcionários da empresa.

A primeira temporada termina no clímax, mas com um cliffhanger barato e preguiçoso — outro sintoma do sistema em que a série é veiculada; afinal, é preciso manter essas assinaturas do Apple TV+. E lá vamos nós esperar mais um ano para saber o que acontece na já confirmada segunda temporada.

Infelizmente, todo esse potencial transformador acaba sendo ignorado por muita gente, a julgar pelos comentários em redes sociais e pelas críticas da imprensa, para quem aparentemente Ruptura é apenas uma ficção científica estilosa ambientada em um escritório estranho. Ora, nem a própria Apple, que veta sexo, violência e política nas séries do Apple TV+, parece se dar conta do apelo extremamente subversivo e da natureza politizada de Ruptura.

No fim, é tipo a galera que reclama que os shows do Rage Against the Machine seriam melhores se eles não metessem política no meio. A ignorância é uma bênção.

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14 comentários

    1. Não achei, lembra mais Kirigan mesmo.
      Os nomes de muita gente na série me parecem quebrados pra formar uma palavra se você prestar mais atenção quando fala ele rápido.
      Mark S. É Marx, Kier Eagan é Kirigan, Helly parece um jeito engraçadinho que eles acharam de chamar a Helena de inferno (Hell, só que no diminutivo). Nenhum deles têm nomes aleatórios, eu só não manjo o significado de todos rss

  1. como assim “veta sexo, violência e política”?? ‘See’ também é uma produção Apple né?

    1. A classificação etária de See é +16 — contém violência, mas não muita. A matéria do The Independent linkada no texto fala que uma série contando a vida do Dr. Dre foi barrada pelo Tim Cook em pessoa devido a “cenas com uso de cocaína, violência armada e orgias em mansões”.

  2. Fui seco procurar o preço do streaming (AppleTV+) para descobrir que só é capaz de usar em aparelhos Apple. Que triste. Viva a pirataria :)

  3. acho que a metáfora por demais literal que permeia a série inteira é justamente seu ponto fraco — essa literalidade excessiva inclusive se revela inútil, justamente pelo fenômeno de fãs que preferem que bandas como RATM não misturem política com sua música…

    ficção literal demais é pra mim, a priori, sempre ruim e preguiçosa: os resultados políticos são questionáveis justamente em função desse tipo de fã e a solução para contorná-lo seria justamente produzir algo ainda mais literal e, em última instância, bobo

    mas se este conteúdo é um ponto fraco, acho que a forma ainda seja o ponto forte da série: ela é bastante habilidosa, ainda que com altos e baixos e apesar dos clichês, em manipular todas aquelas composições simétricas, paletas cromáticas aparentemente confortáveis e pouco saturadas, truques de câmera e sobretudo cenas com toque de surrealismo e realismo mágico para construir atmosferas bastante interessantes, sejam elas tensas, esquisitas, inquietantes, desconfortáveis ou apenas bonitas

    o problema é que no fim da temporada esta disputa entre forma (maravilhosa) e conteúdo (raso como uma tigela e excessivamente literal) foi ganho pelo lado do conteúdo preguiçoso baseado em cliffhanger em lore

    é uma pena! a série tinha um enorme potencial de virar um novo twin peaks mas pelo visto será apenas um novo lost

    1. Não sei se a metáfora é tão literal assim. Em alguma medida, sim — ou eu, que tenho pouquíssimo embasamento teórico na área, não teria sacado —, mas a julgar pela repercussão, que passou ao largo dessas questões mais… controversas, tendo a achar que ela pende para o sutil. Não me surpreenderia, aliás, se ela fosse acidental. De qualquer forma, acho que a dose é boa, suficiente para incomodar sem alienar quem só quer curtir uma série interessante.

      Concordo, porém, que o final colocou a premissa a perder. A construção do clímax achei interessante, mas deixou um gancho muito frágil para a continuidade da história.

      1. É bem possível que seja acidental. Nunca soube de uma atuação do Ben Stiler na militância progressista (ao contrário de atores como o DiCaprio). Mas a acidentalidade possível da série pode ser explicada por uma visão da realidade material apenas. Ela é assim, mesmo acidentalmente, porque ela desenha uma relação absurda de trabalho trabalhador empresa empresário bilionários que está onipresente e se afunilando em cima de todos nós diariamente no mundo todo.

      2. acidental certamente não é, mas também não é certamente uma produção originalmente marxista ou anticapitalista — diria que ela está alinhada a produções recentes como aquele documentário produzido pelos Obamas sobre fábricas chinesas nos EUA, no sentido de expressar um interesse hollywoodiano em pautar minimamente o mundo do trabalho (sobretudo após uma década de escapismo* raso com super-heróis e fantasia)

        mas de fato foi perfeito comentário sobre ser a melhor piada de ben stiller

        acho que o maior problema é justamente que o final da temporada insiste no erro das produções contemporâneas de investir pesadamente no lore da série: nem é uma disputa entre forma e conteúdo, mas parece que no final, prevaleceu a historinha sobre qualquer outra coisa

        *aliás, eu adoro escapismo, mas coisas como filmes da Marvel e afins são simplesmente escapismo ruim

    2. Eu acho que precisamos ser literais ultimamente. Os EUA passam por uma mudança paradigmática nas relações de trabalho que passa, desde a revolta contra a volta aos escritórios (a maioria dos chefes não aceita home office), passando pela sindicalização de vários setores do trabalho (Amazon, desenvolvedores, Tesla) e chegando ao Bernie Sanders (que por mais que seja um social-democrata no Brasil ou na AL como um todo, dentro da lógica dos EUA é um socialista quase-revolucionário).

      Na realidade brasileira, para quem a série não é feita, a maioria das pessoas não tem capacidade de discernimento para entender as sutilezas de um discurso escondido. Aqui o PT é comunista e o Bolsonaro não é liberal. A maioria dos alunos sai da rede pública e privada sem conseguir entender um texto simples (realmente simples, leiturabilidade abaixo de 4º ano) e fazer as 4 operações matemáticas. Precisa ser escrachado, aqui e nos EUA, para as pessoas entenderem sobre o que se passa, sobre o que é e sobre como as coisas estão se desdobrando dentro das relações de trabalho – que nunca estiveram tão desiguais e esticadas desde a Revolução Industrial.

      Eu prefiro algo mais sutil? Talvez. Mas a ideia da arte como sutileza e como algo que depende de estudo, referências, capital cultural e acesso educacional é um tanto quanto pedante e mura quem não tem esse conhecimento. E daí quem chega nessas pessoas é a novela da Globo e o Ratinho, com uma linguagem liberal, neopentecostal-espirita e meritocrática. Só falo isso porque, no meu ver, precisamos mudar a forma como enxergamos a arte popularesca e a capacidade de repassar ideias de esquerda (marxistas ou não) para o trabalhador (CLT, precarizado, PJ etc). Tem que chegar nas pessoas em casa de algum jeito e mostrar a relação de trabalho doentia que a gente construiu e que os grandes empresários (e pequenos também) estão lutando para manter.

      1. anos atrás li um texto muito interessante no Passa palavra (que num outro momento com mais tempo tento recuperar) sobre como a mudança de abordagem do Tropa de elite 1 para o 2 levou à criação de um filme em todos os sentidos pior — independente da qualidade do primeiro filme

        a autora ou autor do texto (que agora não lembro quem é) argumentava justamente que foi preciso de um filme para o outro esfregar na cara dos espectadores quem era o vilão, em função da repercussão do primeiro filme (claro, a gente sabe de todos os problemas que os dois filmes possuem, assim como aquele diretor, mas de um modo geral a maneira como esse argumento foi apresentado fez bastante sentido)

        por isso desconfio bastante das metáforas literais: esteticamente é uma opção preguiçosa (a não ser, é claro, quando se explicita a literalidade, vide os brechtianos, etc, mas aí é outra história completamente diferente) e politicamente tem resultados bastante questionáveis

        ainda prefiro as abordagens mais abstratas, surreais, mágicas, etc — nem é uma questão de sutileza, diria que é simplesmente o desafio de fugir completamente de qualquer metáfora, seja ela literal ou não

        outro exemplo foi o filme Não olhe para cima: a metáfora do filme não tem sutileza nenhuma, ela esfrega na cara do espectador tudo do início ao fim. Mesmo assim, o filme foi usado pelos bolsonaristas para dizer que as pessoas estavam sendo negacionistas da cloroquina. Ou seja: não importa a literalidade, a recepção é incontrolável. Se é assim, então pra que ser literal?

        independente de tudo isso, gostei bastante dessa série, apesar dos vários problemas dela: mesmo com tudo isso, ela é visualmente muito melhor do que a maioria das coisas que se produz para televisão

        1. poxa, valeu por esse comentário! sempre senti isso sobre todas essas produções mas nunca consegui expressar em palavras!