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16 comentários

  1. Como historiador poderia escrever um textão sobre o livro, vou tentar falar de forma genérica. Em síntese, não acho ele nem horrível e nem ótimo. Tem seu público. Podemos resumir como um livro de divulgação científica. Sim, não é um livro de história, de ciências sociais ou de antropologia em si. Concordo plenamente que o livro tem seus bons problemas.

    Só para ficar claro, a crítica do entrevistado na matéria da Folha é sobre os livros de divulgação científica.

    O que mais me chamou a atenção, foi a forma como ele ( Sapiens) se popularizou rápido e depois como ele foi sendo vendido (tanto em resenhas escritas como em vídeos no youtube), como se fosse um livro espetacular, revolucionário etc. E, na verdade, é um livro que tenta trazer a tona alguns temas que o autor escolheu, através do seu ponto de vista. Acho importante destacar isso. O livro não é, propriamente, uma pesquisa ou o resultado de uma longa pesquisa. Na prática é o autor trazendo e defendendo alguns dos seus pontos de vista.

    Em relação a matéria. Sempre que temos um especialista, independente da área, a tendência é ele puxar a sardinha para o próprio lado. Afinal, um livro de divulgação científica como o do Harari está sempre em uma área cinza. E, trabalhar com o recorte cronológico que ele adotou (a “história da humanidade”) é literalmente impossível ser atualizado em relação a toda a bibliografia. E a ideia dele nem é contar a “história da humanidade”, mas levantar pontos que ELE considera importante na nossa trajetória e falar um pouco sobre eles brevemente. Em alguns
    momentos, confesso, eu senti dificuldade de entender aonde ele queria chegar.

    No Brasil a gente teve esse debate, a uns anos atrás, com a popularização dos livros do Laurentino Gomes. Gosto de alguns, outros acho muito exagerados. O Lira Neto fez um trabalho muito melhor na trilogia sobre o Getúlio (que é excelente por sinal), por exemplo. Sobre o tema de divulgação científica o próprio David Wengrow, no paragrafo abaixo, resume muito bem a questão:

    “Então, a culpa é nossa. Quero dizer, nosso trabalho é fazer arqueologia e antropologia. É o nosso arroz com feijão, e é culpa das nossas disciplinas que tenhamos sido tão ruins em explicar para as pessoas o que andamos descobrindo, já que está tudo trancado nesses periódicos científicos de acesso pago ou em conferenciazinhas acadêmicas.”

    Acredito que esse tipo de livro, quando tem alguém que escreve bem como o Laurentino, Lira Neto ou Harari (não falo do conteúdo em si, mas da escrita fluida que ele tem), acaba ajudando a desenvolver um pensamento mais crítico nas pessoas. Fazendo com que passem a observar e pensar coisas que antes não davam tanta atenção. Esses livros também estimulam a leitura e a curiosidade das pessoas sobre os temas, o que acho ótimo. Eu sou a favor de mais livros de divulgação científica. O problema, como já disse, é que esses livros sempre estão em uma zona de cinza. Porque, ao mesmo tempo que eles trazem conteúdos mais complexos de forma mais leve e fluída, eles podem cair na tentação de ficar muito reducionistas ou apelativos (no sentido de apelar para alguma polêmica ou para o excesso de humor, pra chamar a atenção, por exemplo). Não acho que ser tão radical quanto a frase do Wengrow resolva alguma coisa. Acho que é plenamente possível chegar a um meio termo. E, como já citei aqui, tem a trilogia do Lira Neto sobre o Getúlio para ilustrar bem isso.

    Vou ficando por aqui (divaguei bastante) porque se não escrevo um tratado (e eu não falei quase nada) hahahaha acho que consegui trazer alguns pontos pra quem quiser debater.

    P.S: alguém já leu outro livro do Harari? Me falaram que ele, essencialmente, aborda as mesmas coisas em todos os livros com palavras diferentes. Isso procede?

    1. Legal ter um historiador aqui, Tadeu!

      Concordo que esses livros tipo Sapiens têm um espaço. Eu mesmo guardo uma boa lembrança dele, de alguns insights e associações legais durante a leitura. Ainda hoje, mesmo ciente dos problemas, recomendo a leitura.

      Uma dúvida em relação ao seu comentário: um livro cientificamente incorreto, como é Sapiens na visão do David Wengrow, ainda pode ser considerado um bom trabalho de divulgação científica? Acho que o que mais pesa na crítica dele e de outros é o lance da linearidade e inevitabilidade da história humana — aquela história, que muitos de nós aprendeu na escola, de que a humanidade evoluiu em etapas bem demarcadas, como (e em especial a partir d)a Revolução Agrícola.

      O que lhe parece?

      1. Eu tinha escrito um textão. Acabei resumindo pra não ficar inserindo muita coisa dentro do contexto da sua pergunta e tentar ser mais objetivo.

        Respondendo ao seu questionamento de forma rápida: depende. Acredito que, se os problemas do livro (falo de forma genérica, não do Sapiens em si), não forem demasiado graves, porque o livro não poderia ser aproveitado? Afinal vemos isso em várias áreas por ai. Isso não é uma exclusividade da divulgação científica. Não estou defendendo que um livro com imprecisões seja amplamente divulgado ou aceito. Afinal, como eu mesmo citei na postagem acima, é perfeitamente possível se escrever um bom livro de divulgação científica. Acho que em determinados casos, isso pode ser aceito sim. Até porque, se não for algo que comprometa o texto, você pode corrigir em uma próxima edição, por exemplo.

        Acredito que a grande questão do livro do Harari é o “recorte” que ele escolheu. Falar sobre períodos tão distantes entre si em um único livro, já inviabiliza a total coerência interna do livro.

        Bom, se você comentou que teve “alguns insights e associações legais durante a leitura” isso já mostra que o livro causou algum impacto positivo em você. Mesmo com os problemas que ele tem. Isso eu já considero um fator importante. A leitura, seja sobre história, literatura ou divulgação científica tem que causar/despertar alguma “coisa” no leitor. Seja positiva, negativa, espanto, curiosidade etc. você como jornalista sabe isso muito melhor do que eu. Afinal, você vive da notícia e do impacto da transmissão dela nas pessoas (para gerar engajamento no site ou mesmo aqui no órbita, por exemplo).

        Esse é um assunto bem longo e dá para ficar horas falando sobre isso. Essencialmente, as discussões sobre divulgação científica ficam muito presas as opiniões das pessoas e num embate entre quem produz o conhecimento e quem divulga. Normalmente, quem está na acadêmia tende a ser mais incisivo nas críticas, especialmente se for sua própria área. E, se paramos para pensar, esse pessoa não está totalmente errada, afinal gastou horas e horas estudando e pesquisando para chegar naquele resultado (sei bem disso, porque sou graduado e pós-graduado em história).

        Essa discussão sobre linearidade, nem vou entrar nela, porque isso dá pano pra manga. Esse tema dos “pedaços” da história foi até tema do último livro, do grande historiador francês Jacques Le Goff, chamado “A história deve ser dividida em pedaços?”. E tem haver com o desenvolvimento das áreas de conhecimento ao longo do tempo, e da história (como ciência e disciplina) a partir das primeiras décadas do século XX.

        Tentei ser o mais claro e breve possível, não sei se consegui :)

        1. Obrigado, Tadeu!

          Fico reticente com Sapiens porque um dos “insights e associações legais durante a leitura” a que me referi era fundado em uma imprecisão histórica do livro — a já citada e discorrida linearidade da história, em particular a Revolução Agrícola enquanto espécie de marco fundador da civilização. É um argumento muito poderoso no livro e que O despertar de tudo demole com evidências que, para um leigo, soam bastante robustas.

          Fiquei com a sensação de ter sido feito de bobo, sabe? À margem do objeto do livro ser complexo e difícil de resumir em um livro (acho que isso é ponto pacífico), creio que o trabalho do Harari fica manchado, ainda que não comprometido, quando ele ignora ou (pior, se for o caso) opta por ignorar evidências robustas que derrubam um argumento central do seu argumento.

    2. Tadeu, teu comentário foi muito bom.
      Nestes tempos de oito ou oitenta, nada melhor que uma crítica ponderada para entender como a ciência pode contribuir para o desenvolvimento do ser humano.

  2. Nunca li “Sapiens”, mas li “O Despertar de Tudo” (parcialmente). Uma crítica central é que autores mainstream como Yuval ou Pinker propagam o mito — em essência capitalista neoliberal — de que a evolução humana é linear, partindo de sociedades igualitárias pequenas e primitivas e, a partir da adoção da agricultura de larga escala e a ascenção de pessoas ricas, a desigualdade seria uma etapa necessária do “progresso”. Isso não tem base nas descobertas arqueológicas, é mais uma afirmação ideológica que justifica o estado atual da política e economia.
    O que se sabe é que sociedades igualitárias enormes também existiram, assim como povos antigos que voltavam para a igualdade depois de experimentarem a desigualdade.
    Ou seja, o mundo atual não é resultado de nenhuma obrigatoriedade evolutiva natural, mas sim de dominação.

  3. Na época que li Sapiens, o que mais gostei foi a primeira parte, quando fala da revolução cognitiva, de que a capacidade de imaginar foi o que fez os homo sapiens se unirem, evoluírem, e prosperarem. Depois descobri que essa não era uma ideia original do Yuval, mas na época achei uma sacada que me inspirou. Hoje, essa tese também vem sendo combatida ou tá valendo?

  4. Sobre a tal terra preta de índio que a entrevista menciona (não deu pra entrar no link porque vem o famigerado paywall), recomendo a leitura de Sob os tempos do equinócio: Oito mil anos de história na Amazônia central, do Eduardo Góes Neves, editado pela Ubu. Mostra como entre os nossos povos ditos “selvagens” houve sim muita História com H maiúsculo. E vamos torcer pra essa História não ser atropelada pelos verdadeiros primitivos que insistem em manter o Brasil no tempo do extrativismo colonial mais tosco.

    1. Btw, não sei quem são os “verdadeiros primitivos que insistem em manter o Brasil no tempo do extrativismo colonial mais tosco”.

      1. Leia alguma coisa sobre as ações no Congresso Nacional pra esvaziar os ministérios dos Povos Indígenas e do Meio Ambiente, sobre o carnaval da CPI do MST e sobre as cabeças que promovem essas ações.

        1. Então eles não querem manter o extrativismo, eles querem na verdade acabar com ele, botar tudo abaixo e meter o trator pra, basicamente, plantar soja. O extrativismo na Amazônia tem casos excepcionais de sucesso, como o da comunidade que fornece borracha à Mercury.

  5. Vou colar aqui o comentário de uma amiga, porque eu tô com preguiça de escrever e o texto dela tá redondinho: “O problema do ‘Sapiens’ é tentar abarcar não apenas história (o que ele faz melhor no livro) mas sociologia e política, e é onde derrapa muito. Na página 272 ele coloca uma crítica sobre as tentativas de estabilização da ordem sociopolítica no mundo como protagonizadas por apenas dois métodos falidos: nazismo e comunismo. Assim, sem desdobramentos ou aprofundamento. Apenas iguala essas coisas e faz crítica a Lenin e a Marx completamente distorcida e em uma frase. Em outras passagens, ele estabelece uma sutil e perigosa ideia de determinismo no processo de subalternização de determinados grupos sociais. Tudo em meio à um texto fluido e divertido.”

    Li na ondinha, botei na estante e nunca mais.