Com Vision Pro, Apple propõe um futuro estranho e solitário

Mulher de camisa branca, usando o Vision Pro com os olhos sendo exibidos, sorrindo.

O Vision Pro é o dispositivo eletrônico pessoal mais avançado já feito. As palavras são da Apple, mas a julgar pelas impressões de quem testou o headset de realidade mista da empresa, dá para acreditar que a frase de efeito não é só coisa do marketing.

Há anos objeto de rumores e vazamentos, o Vision Pro, a começar pelo nome, trouxe algumas surpresas ao ser revelado na última segunda (5). A imagem é cristalina, o “passthrough” (ver o exterior via câmeras) é excelente, o software é cheio daqueles detalhes deliciosos que só a Apple sabe fazer.

O Vision Pro é o que acontece quando a empresa mais valiosa do mundo não mede esforços (nem custos) para desenvolver um produto que ainda não existe, mesmo que esse produto ainda não tenha uma razão de existir e suscite sérias questões de cunho social.

Afinal, ele não deixa de ser um headset de realidade mista, como tantos outros — piores, é verdade — já disponíveis no mercado e que, por qualquer motivo, não caíram nas graças do público. Suspeito haver algo no corpo humano que repele caixas que cobrem o rosto e emitem luzes diretamente nos olhos.

Do ponto de vista do hardware e da camada de interação, o Vision Pro parece irretocável, ao menos dentro do que se espera de um headset do tipo e de um produto de primeira geração da Apple. Por outro lado — e isso não é um problema exclusivo dele —, os casos de uso demonstrados pela Apple geraram estranhamento e, no geral, não convencem.

Assistir a filmes deve ser legal, desde que você esteja sozinho (ótimo para viagens de avião, inviável dentro de casa, com a família). Ah, e o filme tem que durar menos de 2h, tempo máximo de autonomia da bateria externa, pendurada por um cabo ao headset.

Trabalhar com esse negócio no rosto durante 8h por dia deve ser cansativo, por mais avançadas que sejam as telas, e não deverá inspirar a admiração dos colegas. Já prevejo o renascimento dos “glassholes”, a gente chata que ficava perambulando por aí com o malfadado Google Glass.

A certa altura na apresentação da Apple, apareceu um pai com o Vision Pro na cabeça tirando fotos em 3D do aniversário da filha e outro vendo, sozinho, fragmentos 3D das crianças, presumivelmente feitos por ele usando um Vision Pro.

Imagine o trauma dessa criançada.

Homem, de costas, sentado em um sofá e com o headset Apple Vision, vendo imagens em 3D projetadas à sua frente de duas crianças brincando em uma área verde, cheia de plantas.
Foto: Apple/Divulgação.

Antes de revelar o preço do Vision Pro, de US$ 3,5 mil (cerca de R$ 17,2 mil, em conversão direta), Mike Rockwell, executivo da Apple à frente das iniciativas de realidade mista, como que justificando-se por antecipação, disse que o Vision Pro substitui TV, monitores, computador e outros produtos.

O preço, se a história da computação servir de parâmetro, cairá em algum momento e deixará de ser uma barreira tão íngreme.

Já a esquisitice… O que mais me pegou foi a impressão de que o Vision Pro soa como algo — nas palavras de Nilay Patel, do site The Verge — “estranhamente solitário” para quem o usa. Deve ser estranho também para quem está ao redor, a despeito dos olhinhos simulados que surgem na face externa, indicando que o usuário está atento ao ambiente.

A coisa toda se parece com um comercial absurdo de um produto distópico em um filme de baixa qualidade.

Antes de falar do Vision Pro, a Apple ressaltou a importância de estar ao ar livre, condição que o Apple Watch passará a monitorar, e demonstrou um novo recurso no iPhone/iPad que avisa se você estiver olhando a tela muito de perto, apenas para em seguida apresentar um headset exibido apenas em ambientes internos e que quase gruda os olhos do usuário em pequenas telas1.

De todos os produtos que a Apple já tentou nos empurrar desde o seu renascimento com o iPod, no início dos anos 2000, o Vision Pro me pareceu o menos Apple, o mais deslocado e o mais ameaçador de todos. Esse futuro em que todos usaremos headsets (ou óculos inteligentes, que seja) é meio deprimente.

“A visão que o Vision Pro nos oferece parece mais retrospectiva do que prospectiva”, escreveu Nicholas Carr. “Ele nos revela um tempo em que entrar em um mundo virtual exigia um aparelho. Isso é passado, não o futuro.”

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Foto do topo: Apple/Divulgação.

  1. O jogo de lentes do headset faz com que a sensação seja de que as telas estão mais longe, mas… né, ainda assim.

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4 comentários

  1. Me pergunto se o Steve Jobs estivesse vivo se iria aprovar algo assim como se fosse para “as massas (mais ricas)”. Talvez ele anunciaria mais como um produto experimental ou “chamariz” para outros produtos. Mas divago.

    Quando o Google Glass foi exposto, eu achava que o nicho dele tomaria forma – técnicos e especialistas que precisariam de algo em “realtime” para monitorar seus trabalhos, além óbvio de ajudar com informações literalmente direto ao olhar.

    O Vision Pro é o Google Glass com uma VR na verdade. E sinceramente isso acho um problema. Um trambolho que no final parece algo bacaninha mas dado as características citadas, um ricaço Early Adopter vai usar um pouco (ou fazer alguma live para mostrar ele) e depois jogar na gaveta.

    Não duvido que ele no futuro será algo “nichado”, voltado para o mesmo público que citei sobre o Glass – quem precisa de informação em tempo real enquanto está em uma situação complexa. Como técnicos, médicos e engenheiros.

    Mas bem, se nem o Google Glass virou este nicho, não duvido que o Vision “oculus do Peru da Sadia” Pro vai, no jargão do jovem de internet atual, “flopar”.

  2. Na minha opinião, dificilmente um aparelho desses irá vingar, seja devido aos custos ou à necessidade humana de se enxergar os olhos para interagir. Apostaria muito mais numa solução ao estilo Blade Runner, de painéis, hologramas e projeções no espaço público e privado na era pós celular da internet.

  3. “Ele nos revela um tempo em que entrar em um mundo virtual exigia um aparelho. Isso é passado, não o futuro.”

    Definição perfeita.

  4. Texto bastante lúcido e cirúrgico! Parabéns!

    Ainda bem que a Apple já lançou pelo menos uns 20 produtos/serviços que foram um fiasco [1]. Assim não fica essa impressão meio delirante das massas de que se a maça lança algo é porque vai dar certo (alguns ditos analistas já estão prevendo que esse Vision Pro será uma nova revolução tal como foram os smartphones…).

    [1] https://startuptalky.com/apple-failed-products/