A BMW está cobrando US$ 18 por mês para desbloquear o aquecimento de assentos em seus carros. O recurso não tem qualquer custo operacional extra pós-fabricação e é apenas um dentre vários que a montadora alemã passou a cobrar à parte, em “microtransações”.
Calma, você não entrou no site errado. O movimento da BMW é transversal e vem sendo adotado por empresas de outros setores, inclusive o das toda-poderosas plataformas de tecnologia.
Recentemente, vimos Telegram, Twitter, Snapchat e YouTube lançando planos pagos, além de Instagram e o TikTok promovendo assinaturas de criadores dentro de seus aplicativos.
Assinaturas sempre foram encaradas por críticos como uma possível alternativa mais saudável ao modelo de negócio padrão das redes sociais comerciais – aquele de devassar dados pessoais dos usuários para regurgitar anúncios segmentados supostamente mais eficientes.
Quando assinaturas se tornaram opção real para redes sociais, porém, foi num movimento de acréscimo, não de substituição.
Mesmo para quem paga, a coleta intrusiva de dados e o bombardeio de anúncios persiste — com exceção do YouTube, embora ele continue coletando dados pessoais de qualquer forma.
Esse movimento quase coordenado nos leva a duas perguntas: por quê? E por que agora?
A “gratuidade”1 sempre foi característica do modelo de negócio das redes sociais comerciais, que trabalham duro para remover qualquer barreira, qualquer atrito ao ingresso de novos usuários.
A tese é de que a escala proporcionada pela gratuidade atrai pares de olhos suficientes para vender anúncios segmentados de forma lucrativa. Deu muito certo para brutamontes como o Facebook, e até para pequenos gigantes como Twitter e Snapchat.
Com quase todos os seres humanos conectados a essas redes, essa tese perde força, já que faltam novos pares de olhos para sustentar o crescimento. E assim empresas partem em busca de alternativas, o que o mercado chama de “novas avenidas” de crescimento.
É esse mesmo motivo que explica as mudanças repentinas da Netflix, que vai passar um pente fino no compartilhamento de senhas, algo a que sempre fez vista grossa e até piada, e a recorrer aos anúncios para estimular o aumento da base de usuários, fazendo o caminho contrário ao das redes sociais.
Foi isso, também, o que levou a Apple, uma empresa que fatura vendendo coisas — celulares, computadores, acessórios —, a investir pesado em serviços a ponto de ser meio difícil hoje usar um iPhone ou Mac sem pagar uns trocados todo mês por espaço no iCloud
crescer, Crescer, CRESCER
Em suma, essas mudanças drásticas de percurso se explicam pelo imperativo do capitalismo: o crescimento infinito.
No caso das redes sociais, a pressão por diversificação das fontes de receita é potencializada pela repressão sistêmica, cada vez maior, contra os abusos à privacidade que viabilizaram seus negócios de publicidade mais assertiva.
Lembremos, por exemplo, que o fato de o iOS, sistema do iPhone, passar a perguntar ao usuário se ele permite que um aplicativo qualquer o rastreie causará um rombo de US$10 bilhões no faturamento da Meta em 2022, segundo estimativas das própria empresa.
Seja cobrando diretamente os usuários por recursos tangenciais e dispensáveis, seja coletando percentuais de assinaturas pagas por eles a “criadores” da plataforma, a diversificação em curso se desdobra também em uma antecipação a possíveis quedas de receita, o maior pecado que uma empresa de capital aberto pode cometer perante seus acionistas.
Note que essas quedas não significam, nem de longe, uma quebra ou mesmo balanços no vermelho, pelo menos a curto ou médio prazo. Elas são, porém, encaradas como ameaças tais que fazem executivos reverem antigas máximas, coisas que pareciam escritas na pedra como a Netflix não exibir anúncios ou uma rede social cobrar por funcionalidades. A palavra no mundo dos negócios só vale até o primeiro trimestre negativo.
Para o consumidor final, tão habituado aos Instagram e Twitter da vida que – não importa o quanto os algoritmos dessas redes prejudiquem seu psicológico – permanece ali, fica a dúvida do que fazer, ou se fazer alguma coisa, diante de uma nova realidade em que o nosso bolso entra na mira das maiores empresas do planeta.
Dar dinheiro diretamente a essas empresas, a uma Meta ou Twitter da vida? Ou buscar alternativas mais saudáveis de comunicação, para gente mais preocupada com o que importa e a quem esse dinheiro faria a diferença?
A escolha não parece tão difícil. O que não é fácil é sua execução.
Edição por Sérgio Spagnuolo, do Núcleo.
- Entre aspas porque acessar sem pagar não quer dizer que sai de graça. ↩
Doloroso pensar que a internet já nos serviu de abrigo muitas vezes, lá em meados de 2009, que tinhamos comunidades e não nos preocupávamos com tudo isso que a internet virou depois… Saudades.
As empresas de Big Tech conseguiram piorar essa demanda infinita de crescimento de duas formas: algumas já são tão gigantescas, que basicamente esgotaram o mercado consumidor; a pior parte é esse modelo de consumir atenção, tempo e consequentemente saúde mental ao invés do dinheiro.
Pior que não imagino esse modelo sendo quebrado – assim como os alimentos ultra-processados e viciantes – ter uma vida saudável digital é privilégio de poucos que tem certo poder aquisitivo e uma força de vontade colossal para lidar com o poder dessas empresas.
“Saudades” de quando eu simplesmente pagava as empresas com dinheiro: não meu tempo, saúde e futuro da sociedade.
Isso é uma das coisas mais odiáveis em empresas, capital aberto. Tanto como funcionário, como consumidor, como pra sociedade. Não basta ter lá seu lucro, pagar os funcionários, dar um baita salário pro CEO, ter grana pra reinvestir, etc… Tem q sempre ter mais q ontem, ai de não poder pagar os acionistas. Aí pressiona funcionários sendo q tem dinheiro pra td mundo, muda produtos q funcionam pq estagnou, etc etc.
Iniciativas com a da BMW, que restringem recursos que estão já inseridos no produto são o fim. Além das questões vinculadas ao comércio dos dados, é como o YouTube faz com os recursos que são restritos apenas aos usuários Premium: com destaque para o PIP e a possibilidade de apagar a tela e o vídeo continuar em reprodução.
Daria pra qualificar o capitalismo (pelo menos na forma atual, ou será que sempre foi assim?) como a versão social do transtorno de acumulação compulsiva. O mundo como é agora nunca vai ser suficiente pra fornecer o que o acumulador precisa juntar, juntar, juntar. O triste é que a internet virou só mais um campo pra satisfazer essa gana. Não sei se estou sendo romântico, utópico ou coisa parecida, mas acho que não dá pra repensar as redes sociais e o universo tech em geral sem repensar o que a gente está fazendo com a própria existência. É uma tarefa pra todo mundo. Quem vai dar o pontapé inicial?
verdade fazer que complica
> E assim empresas partem em busca de alternativas, o que o mercado chama de “novas avenidas” de crescimento.
O engraçado dessa parte é que é mais ou menos desse jeito que funciona a urbanização em muitas cidades, relacionado as ruas: simplesmente adiciona mais faixas quando a rua estiver cheia de carros :^)