O que aprendi com cursos do Threads lançados menos de 24 horas depois do próprio Threads

Foto em preto e branco, de um professor homem em frente a uma lousa, com o logo do Threads sobre seu rosto.

Não fazia 24 horas que o Threads estava no ar, na quinta-feira (6), quando li alguém zombando que já tinha gente vendendo curso para bombar na nova rede social da Meta/Instagram.

Incrédulo, abri o marketplace do Hotmart e pesquisei por “threads”. Não havia um, mas sim uma dúzia de cursos do tipo nos resultados, com promessas absurdas de revelar supostos segredos do Threads para os negócios, para viralizar, para vender… enfim, para se dar bem no puxadinho recém-inaugurado do Zuckerberg.

Os valores variavam de R$ 6,99 a R$ 227,63, ainda que esse mais caro fosse em espanhol e, pelos centavos, suspeito seja resultado de uma conversão de moedas. Entre os materiais em português do Brasil, R$ 97 era o teto.

Print da página de resultados do Hotmart para a pesquisa por “threads”.
A galera não perde tempo. Imagem: Manual do Usuário.

Quais segredos alguém poderia ter e estar disposto a revelar de uma plataforma lançada literalmente ontem? A menos que fosse alguém detentor de segredos industriais da Meta e um desprendimento sobrenatural, nenhum. Ainda assim, resolvi pagar para ver.

Comprei dois cursos: aquele mais barato, intitulado “Seja interessante no Threads”, do Wellington, e “Threads para negócios”, de R$ 29,90, da Patrícia1.

Threads para negócios

O curso da Patrícia tem mais substância. Ele é apresentado em “passos”, como se fossem aulas, dentro de uma área na plataforma do Hotmart. Há vídeos, arquivos PDF e até espaços para comentários para os alunos interagirem. Meus colegas devem ser tímidos, porque até a tarde desta terça (11) os espaços estavam vazios.

Naquela quinta-feira (6/7), logo após a aquisição, pouca coisa estava disponível: dois arquivos PDF, um sobre estratégia e outro com o primeiro passo de uma jornada de… hm, seis. O caminho para se dar bem nos negócios usando o Threads é bem curto, aparentemente.

A estratégia, um documento PDF de sete páginas, traz algumas orientações genéricas e mais relacionadas à construção de marca do que ao uso do Threads, que é mencionado aqui e ali apenas para constar.

É indiscutível que dicas como “construa uma marca sólida”, “engaje com a comunidade” e “networking e parcerias” são fundamentais, e por isso mesmo é de se questionar o valor que alguém interessado em usar o Threads para negócios poderia extrair delas a essa altura do campeonato.

“Você já é uma marca e as pessoas já tem uma impressão sobre você”, afirma a professora em letras enormes. “Isso te assusta ou te conforta?” Ai que difícil. Não sei, Patrícia!!

A sensação, que depois fica mais forte, é de se trata do material reciclado de outra rede social. Ela só se dissipa um pouco no final, quando a autora diz que “no caso da [sic] Threads, existe uma grande armadilha que é a ESCRITA”, ainda que essa frase funcione para o Twitter também.

Algumas celebridades do Instagram/TikTok estão sentindo a pressão da “armadilha” de ter que escrever no Threads:

Print de um post da @virginia no Threads: “Queria falar algo aq, mas n tenho nada de interessante kkkkkk então vai só isso mesmo”.
Agora complicou. Imagem: @virginia/Threads.

Os outros passos do curso exibiam a seguinte mensagem:

Disponível em breve, ainda no dia 6/7!
O Threads acabou de ser lançado, as análises aqui apresentadas são atualizadíssimas!

Ufa! Fiz o que me foi pedido e, dias depois, acessei meu curso novamente.

Na terça (11), novos arquivos PDF para os passos 2, 3 e 4 e um novo módulo de arquétipos de marca com três vídeos que, somados, totalizam cerca de 25 minutos, tinham aparecido. Nos demais passos ausentes, a mensagem tinha mudado e agora pedia para o aluno retornar no dia 7/7. Como se nota, o prazo não foi cumprido.

Os vídeos não citam o nome “Threads” em momento algum. Nos PDFs, ele é raro: o nome da rede, objeto do curso, não aparece nos passos 1 e 2 e consta apenas uma vez no passo 3. Ainda que esse passo tenha apenas três páginas, uma delas a capa, esperava mais. A referida menção solitária a “Threads” diz o seguinte:

Na Threads, podemos trabalhar com o que chamamos de Antecipação, que nada mais é do que você postar “deixas” do que está por vir ou até mesmo começar a guiar o assunto para o seu próximo produto.

Nessa hora fiquei pensando se a Patrícia não estava dando uma “deixa” de que fui tapeado.

Print parcial do PDF do curso da Patrícia: “Realize transmissões ao vivo: Utilize a funcão de transmissão ao vivo do Threads para compartilhar eventos, demonstrações de produtos, tutoriais ou sessões de perguntas e respostas. Isso permite uma interação mais imediata e autêntica com a audiência.”
Meio difícil fazer lives no Theads. Imagem: Patrícia/Threads.

O passo 4 traz exemplos de posts do Threads para inspirar. É nesse passo, também, que a sensação de conteúdo reciclado bate forte. Patrícia sugere realizar transmissões ao vivo e analisar as métricas disponíveis no Threads. A rede social ainda não oferece nenhum dos dois recursos.

Como bônus, ganhei um vídeo de como eliminar a procrastinação. Esse eu deixei para ver depois.

Seja interessante no Threads

Capa de uma apresentação de slides do Threads, com um esquema de threads da computação ilustrando-a.
Acho que não é bem desse “threads” de que estamos falando… Imagem: Wellington/Reprodução.

A promessa do curso do Wellington é mais audaciosa: seja interessante. Eu queria ser mais interessante!

Wellington é um mestre da síntese, oferecendo ao aluno apenas um arquivo PDF de seis páginas (contando a capa) criado em um site chamado Gamma (tem um selo no canto de todas as páginas).

Logo de cara, achei curiosa a escolha da ilustração: não o logo do Threads, nem prints do aplicativo, mas sim um esquema de threads da ciência da computação. É tudo dos computer, né? Deve ter relação.

Na sequência, há uma pequena apresentação do Threads (“um espaço de interação”), o que é o Twitter e como criar um post, instrução dada num esquema que não faz sentido algum.

No final, na parte “Métodos e atributos da classe Thread” (?), Wellington dá dicas para se dar bem na nova rede:

  1. Vincule seu Instagram para receber os seguidores de lá (essa é uma boa dica!);
  2. Convide amigos próximos e contatos do WhatsApp;
  3. Siga todo mundo — só membros normais, influenciadores não — para que eles te sigam de volta.

Nunca confie em influenciadores. Eles não te seguem de volta.

A maior dica, porém, está no tópico “aplicabilidade”. Tomo a liberdade de transcrevê-la na íntegra, mesmo correndo o risco disso ultrapassar o limite de “fair use” dado que essa frase corresponde a uns 20% de todo o texto do PDF:

Por se tratar de uma nova plataforma é interessante você postar muitos conteúdos criativos para tornar seu perfil interessante, mas não esqueça de viver pois com os avanços das tecnologias você fica cada vez mais longe do mundo real.

Ao lado, apenas uma “leitura recomendada”: a Bíblia Sagrada.

Slide intitulado “Conclusão e próximos passos”, com uma foto de alguém no topo de uma montanha e dicas para viver fora das redes e ler a Bíblia.
Só se vive uma vez, e na graça de Deus. Imagem: Wellington/Reprodução.

Fique rico vendendo cursos online

Com escritórios em vários países da América, incluindo Estados Unidos, a startup brasileira Hotmart criou um negócio de venda de produtos digitais que alcançou números enormes: até maio deste ano, tinha 35 milhões de usuários e 135 mil criadores de cursos, como a Patrícia e o Wellington.

Antes dessa revolução digital, as pessoas tinham que comprar revistas (de papel!) para aprender a usar o WhatsApp. Não mais: nunca foi tão fácil criar produtos digitais.

Tamanha facilidade, aliada ao impulso que a pandemia criou e à demanda por formas de ganhar dinheiro trabalhando de casa, parecem ter consolidado esse mercado nos últimos anos.

O Hotmart tornou-se “unicórnio” — startup de US$ 1 bilhão — em março de 2021, na fase aguda da covid-19, após levantar R$ 735 milhões em uma rodada de investimento.

Meu breve experimento não quer dizer muita coisa, fora evidenciar a inexistência de qualquer controle de qualidade por parte do Hotmart, o que demanda do consumidor atenção em dobro para separar o joio do trigo — presumindo que exista trigo nesse latifúndio digital.

Antes de publicar este relato, voltei ao Hotmart e fiz uma nova pesquisa por “threads”. Os resultados haviam se multiplicado junto às promessas cada vez mais mirabolantes.

“Threads: os 4 pilares para uma audiência envolvente” (R$ 27), “Método MK: passo-a-passo para ganhar dinheiro no threads” (R$ 19,90), “Vitalize [sic] no Threads” (R$ 17) e, claro, a união dos assuntos mais adorados por essa galera: “Threads BoostMaster: Como bombar no Threads com o ChatGPT” (R$ 27). Não me surpreenderia se me dissessem que ele foi escrito pelo ChatGPT.

Foto do topo: montagem sobre Immo Wegmann/Unsplash.

  1. Ocultei os sobrenomes dos autores para não expô-los. O objetivo não é sacanear alguém específico; é demonstrar o que está por trás desses cursos caça-níqueis. Os dois adquiridos foram escolhidos sem muito critério, apenas para ilustrar o argumento e não pesar muito no meu bolso.

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16 comentários

  1. Pra mim o mais absurdo aí a pessoa acreditarem que vai ter algum tipo de conteúdo relevante num curso desses, que saiu 1 dia depois do lançamento. As pessoas precisam usar um pouco mais os seus cérebros, porque quem dá força pra esse tipo de gerador de “conteúdo” é quem consome.

    Vamos ser um pouco mais seletivos e parar de acreditar em todo mundo, principalmente na internet. Fica a dica ;)

  2. “presumindo que exista trigo nesse latifúndio digital”

    Essa é a premissa. Ou deveria sempre ser.

  3. Excelente matéria. Este mundo de produtos digitais tem muita coisa triste. Ao ler tais títulos de cursos online, as vezes penso que o mundo está perdido e as vezes penso que todo lugar tem picareta, e o melhor que temos que fazer é aprender como fugir deles.

  4. “Leitura recomendada: Bíblia” me pegou totalmente desprevenida hahahahahaah

    E eu que achava que o ápice era o pessoal postando “guia” no LinkedIn no dia do lançamento da rede. Ingenuidade minha.

  5. Muito bom seu texto! E concordo com alguém por aí que falou que a Hotmart poderia ser mais como a Udemy no quesito de avaliar que tipo de produto está sendo oferecido. E como também outro comentarista disse, ri muito com a leitura recomendada, hahaha.

  6. Eu reparei bem isso, no dia seguinte já tinha especialistas vendendo curso. Ainda pensei: “nem o Zuckerberg deve saber usar ainda”. Eu só queria ter a cara de pau desse povo pra criar um curso de qualquer porcaria e ganhar dinheiro fácil…

  7. Fico com pena do investimento, mas adoro o tom ácido das tuas investigações.
    Existe um universo paralelo de propostas de produtos digitais que prometem resultados mirabolantes. É triste.
    Procure por cursos de 1 real na plataforma pra entender o tamanho do buraco.

  8. Ghedin gosta de uma treta. Entendo que falta controle de qualidade algumas vezes para os cursos nessa empresa, mas também tem muita coisas boa por lá. Tem que filtrar… bastante rs
    Ela é mais uma plataforma para hospedar seu produto digital, oferecer meios de pagamentos do que um produtor de infoprodutos.

    Gostaria também que ficasse mais evidente e tivesse mais avaliações das pessoas que compraram o curso, assim como acontece na Udemy.

    A Hotmart tem o sistema de avalição deles do produto como o Blueprint , Temperatura entre outros. Como eram desses produtos avaliados aqui no artigo?
    Acho que eles avaliam mais a página de vendas (landing Page), e quantidade de vendas do produto do que a “qualidade”. 3:)

    1. Acho que esse ponto está no centro da discussão sobre “plataformas”. Elas não são neutras. Começa do minimo, se a gente descobrisse que tem gente ali vendendo curso de fotografia pornografia infantil, pode? Seria um escândalo, óbvio que não pode. Mas para mim esses cursos são tão descaradamente toscos que deveria bater o Procon ali depois dessa matéria do Ghedin.

  9. Parabéns pela matéria Ghedin. A galera sabe que pessoas comprarão os cursos e vendem essas coisas sem nada para oferecer.

  10. Caramba, eu sorri demais na “Leitura recomendada: bíblia sagrada” KKKKKKKKKKKKKKKKK

  11. “Como bônus, ganhei um vídeo de como eliminar a procrastinação. Esse eu deixei para ver depois.”

    Eu vi o que você fez aí

  12. Uma complementação, este curso do Wellington está escancarado que não foi feito por ele, foi uma IA que fez isso, prova disso as bizarrices de ter confundido threads de rede social com threads de computador, recomendar a Bíblia Sagrada, e a apresentação ser feito no Gamma, que é um gerador por IA, como se vê no site deles https://gamma.app/.

    É patético a Hotmart não ter analisado friamente o conteúdo, eu se fosse o censor da Hotmart, precisava de 3 minutos para reprovar o curso dele.

    Em tempo, parabéns ao autor, me senti numa matéria do Fantástico (não é uma ironia)

  13. “Como bombar com ChatGPT.” Foi mais rápido do que eu imaginava. kkkkk
    Infelizmente, esse tipo de curso reciclado é muito comum.