O anti-guia que todos precisamos ler

Zine do Manual do Usuário aberto, foto de cima, com duas cópias ao lado segurando a central aberta.

O texto abaixo, assinado pela Tatiana Dias, editora sênior do The Intercept Brasil, é o prefácio do zine Outros jeitos de pensar a tecnologia, escrito por este editor (Rodrigo Ghedin) e publicado com a marca do Manual do Usuário. Compre a sua cópia no site da Casatrês — custa R$ 35.


Las Vegas, janeiro. Para quem trabalha no jornalismo de tecnologia, a capital da perdição vira o centro do mundo. É a semana da CES, a Consumer Electronics Show, um mega-evento anual que costuma, junto com os eventos do Google e da Apple, ditar os rumos da cobertura e das tendências para o ano vindouro. Lá, tudo é colossal. As distâncias, os estandes, a iluminação. O clima claustrofóbico dos cassinos de Las Vegas e sua profusão de luzes, barulhos e cenários artificiais nos ajuda a perder a noção se é dia ou noite.

Os jornalistas se espremem nos keynotes para assistir, com entusiasmo, o que os CEOs têm a apresentar. Depois, se acotovelam para fazer um hands-on com o último celular, testar a última TV de altíssima definição, experimentar os objetos que, se tudo correr conforme o protocolo, atiçarão os desejos dos “early adopters” que influenciarão os consumidores comuns, meros mortais que precisam parcelar o iPhone em 12 vezes.

Decidi ir até Las Vegas para abrir esse livro porque, para mim, o que acontece ali é a melhor metáfora possível do mercado de tecnologia. É lá que as promessas são vendidas pelas empresas e compradas pelo jornalismo, o grande responsável por atiçar os desejos e tentar convencer as pessoas a comprar ou adotar algo novo que elas, na verdade, não precisam.

É disso que se trata esse livro. Não por acaso, quando entramos nesse universo, não somos mais pessoas, consumidores: somos usuários. Se dependesse dos rumos que a indústria dita, engoliríamos suas tendências e novidades goela abaixo, docilmente. Mas Rodrigo Ghedin se firma como uma das poucas vozes dissonantes no noticiário quente de tecnologia; seu Manual do Usuário é, na verdade, um anti-guia que blinda os usuários de serem ludibriados pelos departamentos de relações públicas da indústria.

Neste livro, Ghedin explora tanto a indústria de hardware e gadgets quanto as de redes sociais, as big techs; se aprofunda em dilemas contemporâneos e explica o que há por trás das propagandas e estratégias de RP. Muito bonita a sua campanha dizendo que protege os negócios, Meta; que tal, agora, falar sobre o como o seu ecossistema se consolidou como um monopólio baseado em um dos modelos mais perversos de exploração — o da nossa privacidade?

Interessante esse tal de metaverso, uau, anúncios em três dimensões. Mas realmente precisamos de mais um ambiente para sermos bombardeados por publicidade? E os NFTs que, dizem, podem criar um novo e promissor mercado de arte? A Web3 pode revolucionar mesmo a internet como conhecemos? Até que ponto ela vai realmente mudar as estruturas ou, bem, garantir o retorno para os especuladores e investidores que vivem de prometer o que ainda não existe?

Todas essas questões são exploradas nas colunas de Ghedin, sempre sóbrias diante de tanto entusiasmo e promessas. Mas não, este livro também não é um apanhado amargo que prega a abolição de toda e qualquer tecnologia. Eu o vejo mais como uma vacina necessária para acompanhar esse mundo. Uma vacina que garante um olhar treinado pragmaticamente para ir além da primeira leitura, e refletir sobre os interesses obscuros por trás de todas as últimas novidades que, dizem, vão mudar o mundo. A quem realmente elas servem? E mais importante: elas servem mesmo para você?

Ghedin traz uma visão crítica, mas também sincera e pragmática. Narra sua tentativa de tentar romper com todas as indústrias e negócios que ele critica — e falhando. Como todos nós, que não conseguimos manter a coerência em tudo, numa luta inglória contra uma indústria que existe em explorar e revolucionar tudo, mais uma vez, só para garantir mais acumulação e reserva de mercado. Excluir os perfis de redes sociais, não negociar com empresas destrutivas, só adotar soluções de código aberto são saídas individuais, e Ghedin explica como fazer isso. É uma boa maneira de extirpar a culpa, mas se não der, tudo bem também. “Somos humanos, somos falíveis, contraditórios, temos nossas urgências, outras prioridades”, ele escreveu numa mensagem afetuosa a quem se sente impotente.

Porque, apesar de ser centrado nos usuários, Ghedin sabe que a engrenagem é muito maior e que a ação individual é paliativa. Ainda assim, é importante. Porque, assim como um cassino, tudo o que a indústria quer é vender ilusão e a possibilidade de um futuro diferente — quando na verdade somos tragados para o consumo desenfreado e a total dependência de redes sociais e outros eletrônicos em busca de uma revolução que nunca vem. Nosso poder diante da engrenagem é limitado. Mas esse livro nos dá ferramentas para enfrentá-la.


Tatiana Dias é jornalista há mais de uma década em São Paulo, principalmente nas áreas de tecnologia e direitos digitais, direitos humanos, ciência e comportamento. Já trabalhou no Estadão, Galileu, HuffPost e Nexo, além de ter dado aula de jornalismo para alunos dasperiferias de São Paulo. Atualmente, escreve para o Intercept.

Newsletter

O Manual no seu e-mail. Três edições por semana — terça, sexta e sábado. Grátis. Cancele quando quiser.

Deixe um comentário

É possível formatar o texto do comentário com HTML ou Markdown. Seu e-mail não será exposto. Antes de comentar, leia isto.

2 comentários

  1. mal posso esperar para chegar os meus dois, um vou deixar em uma “geladeira comunitária, que virou biblioteca” que passo sempre ^^

  2. Cirúrgico, traduziu em palavras o sentimento que me faz acompanhar este blog há tantos anos, desde que caí aqui completamente sem querer após ler um livro do Ben Horowitz.