Rubem Alves, que nos deixou mês passado, escreveu:
“Já tive medo da morte. Hoje não tenho mais. O que sinto é uma enorme tristeza. Concordo com Mário Quintana: ‘Morrer, que me importa? (…) O diabo é deixar de viver.’ A vida é tão boa! Não quero ir embora…”
Alguns dias depois de ler essa frase viajei de avião para São Paulo e com tantos acidentes aéreos então recentes, o pior passou pela cabeça. (No fim, foram voos tranquilos.)
A morte traz várias implicações a um monte de gente, menos a quem morre. O que importa depois que nada mais importa? O problema é a saudade aos que ficam. Basta ir a um velório para presenciar o desespero e a agonia que o adeus definitivo causa. O velado? Nunca vi mais calmo.
Lidar com o fim é um assunto espinhoso desde que tomamos consciência da vida — por ser uma só ela nos é tão cara. Antigamente eram as fotos reveladas e as histórias contadas pelos mais próximos o que aliviada a dor. Hoje, o digital dá uma grande força e faz, às vezes, parecer que quem se foi continua entre nós.
Quando alguém morre, a sua persona digital não acompanha o corpo físico no túmulo. O perfil no Facebook, as fotos do Instagram, as mensagens no Twitter, tudo isso continua no ar. Até um carro fantasma de Rally Sports Challenge. A tecnologia ainda não tem um mecanismo global e preciso capaz de determinar quando alguém morre e, com base nele, tomar as devidas providências. Não sabemos sequer quais são as providências devidas.
Esse descompasso entre vida, morte e digital acaba servindo de amparo às famílias. Redes sociais afetam o luto. Existe uma discussão sobre o ponto em que elas deixam de ser saudáveis, mas parece unânime a opinião de que ver as fotos do mural e os comentários bobos e despreocupados ameniza a perda.
Um dos episódios da série inglesa Black Mirror narra a história de uma viúva que adere a um serviço que recria a personalidade do seu esposo falecido com base nos seus resquícios digitais. Com o avanço da tecnologia a empresa chega ao ápice de recriar o homem, em tamanho natural e com as funções básicas de um ser humano, para ocupar o lugar do morto.
A premissa da série é levar hipóteses a extremos e essa não é diferente. Só que hoje já existem sinais de um sistema embrionário, talvez um alerta (ou um lembrete) de que o futuro distópico de Black Mirror não é tão surreal quanto parece à primeira vista. Gilberto Dimenstein falou na CBN sobre uma etiqueta digital que, disposta no túmulo, traz à tona fotos, textos e outros conteúdos digitais de quem está ali embaixo. É uma forma de preservar a memória de quem, daqui a algumas décadas, será apenas mais um na longa lista de seres humanos que já caminharam na Terra.
O assunto não se esgota aqui. Nos Estados Unidos já se discute o direito às propriedades virtuais de quem morre. Afinal, uma conta no YouTube ou um perfil no Twitter pode valer alguma coisa. Em alguns casos, bastante coisa. Mesmo o perfil no Facebook, que em regra não vale nada, é objeto de celeumas no âmbito legislativo.
A nossa sorte é que nada disso alcança ao pivô da situação, ou seja, aquele que morre. Pelo menos por enquanto o descanso eterno está garantido.
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Foto do topo: Lauren Rushing/Flickr.
Achei bizarra essa história da etiqueta digital. As pessoas já ficam tão abaladas durante um velório, imagina se tivesse uma projeção dos momentos digitais do morto? Eu ficaria meio desconcertado.
É claro que isso depende de como cada pessoa encara a morte; deve existir alguém que goste de lembranças vívidas assim.
Ainda no mesmo assunto, um bom ponto é a questão da sucessão das propriedades virtuais. Lembrei-me de uma história em que os filhos estavam em uma discussão com a Apple em razão do iPad deixado pela mãe morta. O aparelho estava bloqueado e eles não possuíam a senha; a Apple se recusou a desbloquear remotamente e por aí vai. Fico pensando se as empresas vão exigir uma abertura de inventário para que se faça a sucessão desse tipo de propriedade, o que nunca vi acontecer até agora (imagina a briga para ficar com a conta do iTunes cheia de conteúdo comprado!).