Logo após os eventos de 8 de janeiro em Brasília, a imprensa correu para noticiar que os terroristas haviam se organizado por redes sociais e aplicativos de mensagens.
Milhões de brasileiros, bilhões de pessoas usam redes sociais e aplicativos de mensagens todos os dias para se comunicar, trabalhar, cuidar das suas vidas e, também, cometer crimes.
Dito isso, estranho seria se os terroristas não tivessem se organizado no digital. Fariam como? Por cartas? Telefone? Sinais de fumaça?
No calor do momento, na ânsia de apontar culpados para o terror instaurado na capital federal, os dedos se voltaram às empresas responsáveis por mediar a nossa comunicação digital.
Ciente do risco de levar pedradas (figurativas), argumento aqui que talvez a nossa indignação esteja mal direcionada.
É fato que as empresas de tecnologia poderiam ter feito mais. No mínimo, feito valer seus próprios termos e políticas de uso, o contrato que firmam com usuários e a sociedade e que, por isso, tem força de lei, mas que por motivos vários e pouco transparentes são ignorados em situações limítrofes que envolvam grandes interesses comerciais e/ou políticos.
Esses termos de uso proíbem certas condutas desagradáveis e outras ilegais, o tipo de coisa que afasta usuários, anunciantes e investidores.
É, portanto, do interesse das empresas manter seus ambientes minimamente civilizados, ainda que esse interesse muitas vezes se choque e acabe desbancado por outros menos nobres, como engajamento e geração de receita.
Além disso, há uma expectativa razoável da sociedade, traduzida em pressão às empresas, de que eles não sejam cenário de tramoias golpistas e da prática de outros crimes.
Por isso é compreensível a indignação manifesta ao nos depararmos com diálogos conspiratórios no Telegram e vídeos do atentado transmitidos ao vivo pelo Facebook. Essas empresas poderiam ter feito algo por iniciativa própria. Juridicamente, porém, não é dever delas tomarem essa iniciativa.
Esse papel cabe às nossas autoridades. Órgãos como a Advocacia Geral da União (AGU), o Ministério Público Federal (MPF), as polícias, que, ao constatarem ilegalidades em curso, devem denunciá-las à Justiça e pedir para que a lei seja aplicada.
Em paralelo, se quisermos que as empresas de tecnologia façam mais no combate às práticas delituosas em seus domínios, é preciso que isso esteja expresso em lei. Sem surpresa, não houve esforço algum da gestão federal anterior em avançar essa agenda e a solução apresentada pelo Congresso, o famigerado PL das “fake news”, veio cheia de poréns preocupantes. (E, de qualquer forma, empacou.)
Houve uma falha sistemática grave no aparato estatal brasileiro nos últimos anos ao (não) lidar com golpistas em ambientes digitais. O atentado de 8 de janeiro foi o ápice e evidência incontestável dessa falha.
Um ótimo exemplo da leniência do Poder Público para com o golpismo escancarado pode ser visto fora das redes. Somente agora, depois que o pior que poderia ter acontecido, aconteceu, o MPF abriu um inquérito para apurar a conduta antidemocrática continuada da Jovem Pan ao longo de 2022.
Note: da Jovem Pan, de quem produz o conteúdo, e não das empresas que fabricam rádios e TVs, nem das emissoras que repassam seu sinal aos ouvintes e espectadores.
Redes sociais e aplicativos de mensagens não são uma Jovem Pan (100% editorial) nem são uma Claro/Vivo/TIM (0% editoriais). São figura jurídica nova, complexa e maleável, em constante metamorfose, dosando a intensidade da editorialização a fim de se encaixar na definição que lhe seja mais vantajosa caso a caso.
De qualquer forma, elas estão sempre sujeitas às leis vigentes nas jurisdições onde atuam. A Meta, por exemplo, pode bolar inúmeras políticas para remover conteúdo e banir usuários; pode até se contrariar, como tem feito ao lidar com líderes golpistas — bane Trump, mas deixa Bolsonaro livre, por exemplo —, mas precisa, independentemente da sua vontade, respeitar as nossas leis e decisões judiciais.
Seria pedir demais, além de equívoco perigoso, que as empresas de tecnologia vigiassem e punissem por conta própria, excluindo conteúdo a torto e a direito sem serem provocadas ou sem ter um protocolo legal a ser seguido, com consequências em caso de descumprimento.
Hoje é justificável clamar por ações duras por parte delas, afinal são vídeos e grupos insuflando um golpe de Estado; amanhã, quem sabe?
Nos dias seguintes ao 8 de janeiro, choveram críticas pertinentes às falhas das autoridades de segurança pública em desmobilizar os acampamentos golpistas e se adiantarem ao levante. A essa altura, é uma hipótese bastante plausível a de que houve leniência por parte das autoridades.
Creio que essa leniência com o golpismo, vista e apontada no “plano físico” — nos acampamentos em frente aos quartéis, no assalto à Praça dos Três Poderes, na letargia em regular as redes sociais —, repetiu-se no digital. Só que ninguém está questionando o plano digital. Por quê?
Em vez disso, toda a responsabilidade parece recair às empresas de tecnologia. Agimos como se os representantes locais da Meta, do Google, do Telegram devessem ser legisladores, procuradores e juízes ao mesmo tempo, quando não são — e nem devem ser — nada disso.
As únicas iniciativas de maior impacto nesse sentido, nos últimos anos, foram os acordos firmados pelo TSE com as redes sociais em 2022 e o controverso inquérito dos atos antidemocráticos do Supremo Tribunal Federal (STF). (Controverso em sua base legal, não no mérito.)
Por mais arriscado que seja concentrar o combate ao golpismo na corte suprema e personificar essa luta na figura de um ministro, foi graças às canetadas de Alexandre de Moraes que bolsonaristas perderam seus canais de comunicação digital e/ou tiveram-nos desmonetizados. As redes e os aplicativos de mensagens, de seu lado, quase sempre responderam prontamente as determinações do STF.
Resta agora a esperança de que, com o ambiente institucional livre da inflamação perene causada por um presidente golpista e todos os efeitos em cascata que isso gerava, essas agendas — a da regulação e a do combate ao golpismo — avancem.
Nos últimos dias, a AGU protocolou requerimentos junto ao STF para que empresas de tecnologia bloqueassem perfis e canais digitais, preservassem o conteúdo incriminatório e revelassem à Justiça dados que permitam identificar os golpistas.
No Executivo, o governo Lula definiu a regulação das redes como prioridade e já começou a montar esse quebra-cabeças.
Meu agradecimento ao Francisco Brito Cruz e outros juristas e aos amigos do Núcleo pelas conversas a respeito do argumento do texto acima. Valeu!
Foto do topo: Marcelo Camargo/Agência Brasil.
Redes sociais são feitas baseadas em engajamento.
Eu tou tentando refletir bastante sobre e pensando aqui em um post recente do André Janones no Twitter.:
(recomendo ler o fio inteiro dele para ter melhor contexto)
As vezes penso no fato de que parte da sociedade aceita uma comunicação que a lhe coloca como personagem. E é isso que grupos em aplicativos de comunicação e vídeos em “redes de vídeos curtos” acabam servindo. E antes que falem que “TV e Rádio” não contribuem, só relembrar daqui deste texto mesmo sobre a atuação da Jovem Pan e da tolerância de SBT, Record e algumas emissoras.
Muitas vezes eu falava: “falta um ‘Beakman’ para explicar as coisas”. Tipo, falta alguém com carisma que pudesse servir como icone que falasse os fatos reais e fizesse a pessoa “comum”, esta que vive vendo vídeos no zap, abrangida pelo conhecimento que não lhe botaria no meio do fascismo.
E aqui falo de um ponto de vista pessoal agora: nunca tive paciência para ver Tese Onze ou Orlando Calheiros por exemplo ou qualquer outro canal progressista em YouTube ou Twitch ou onde for. Em partes admito que por algum tipo de preconceito que preciso vence-lo. Outro porque as poucas vezes que vi, sempre senti um misto de pedância, resignação e ausência de simpatia. Mas talvez seja o preconceito falando mais alto.
Na época durante o “período combativo” (período eleitoral), acabei vendo mais perfis no Twitter que usam o “deboche” como arma (Jairme, Tesoureiros e muitos outros). O deboche conversa muito com os preconceitos internos, e com isso dá para ler certas informações e “engoli-las” para poder entender a situação.
Desde 2013 noto este problema do progressismo em não saber conversar com o “cidadão comum”. Alguns botavam parte do preconceito para fora – via eles como “medíocres”, esquecendo que se eles estão indo por um caminho aberto que o façam ter atitudes criminosas (como ir para garimpos ilegais, grilagem ou outros), é porque de certa forma o caminho “legal” (não criminal) estava fechado, ou ao mesmo não o compensaria.
Comunidades carentes, favelas e espaços indígenas, ao que noto, cresceram mais de forma pragmática nas comunicações. O cara do deboche do twitter ou dos comentários sobre socialismo no youtube talvez ignoraram um pouco que o cara que tá na sociedade não quer exatamente aprender sobre socialismo. Só quer viver e curtir a vida. de alguém fala “o preço a pagar é X”, e ela se sente disposta a pagar por este preço, ela vai e paga.
E assim se fez a cabeça dos golpistas – muitos deles na verdade oriundos ou da chamada “classe média” ou “oportunistas” (gente que ganhou a vida em uma zona cinzenta): “o preço a pagar pelo conforto que tinham até então é lutar contra o comunismo com as armas (E bundas) que tem nas mãos”.
Por mais que a culpa recaía nas empresas por falta de moderação, há uma certa culpa de até hoje os espectros progressistas não terem conseguido lidar com esta camada da população. Seja porque não vencera seus próprios preconceitos, seja porque não acharam a melhor forma, seja porque de fato a comunicação feita por entes da extrema direita conseguiram se fixar infelizmente na mente destas pessoas, e de alguma forma dialogou com os preconceitos destes que viraram golpistas.
Perdão o textão.
Acho que ninguém quer que as redes sociais tomem para si a tarefa de “vigiar e punir” proativamente. O que criticamos, penso eu, é a série de casos que infrigem as suas próprias normas ou até leis, são denunciados pelos usuários e… nada acontece. Lembro por exemplo de um vídeo acho que do Roberto Jefferson repassando falsas informações sobre vacina/covid que até esses dias ainda tava online no youtube (deve tá até hoje, mas não vou procurar isso)
Olha, eu acho que não dá pra colocar esse episódio específico só na conta delas, mesmo. Mas se pegarmos numa visão macro, desde lá o começo da década passada, elas são sim responsáveis pela radicalização desse pessoal, pela ascensão da extrema direita e eleição de Trump e Bolsonaro; então, em última instância, acredito que são responsáveis pelo que aconteceu dia 8, sim.
Acontece que, mesmo que agora tentem banir conteúdo golpista pra agradar anunciantes (o que também não parece o caso, dado o alcance que vinha tendo a Jovem Pan), já criaram um monstro maior do que são capazes de controlar. Agora, esses radicais só vão migrar pra outras plataformas.
se não fosse pelo telegram, seria pelo Signal.
Ou seja, processo no mensageiro, não no meio de propagar a mensagem.
Uma questão: Signal permite grupos?
Sim, mas são limitados a 1 mil membros. (No Telegram, um super grupo pode ter até 200 mil membros.)
Obrigado. É que fiquei pensando sobre esta questão de grupos em comunicadores, mas não duvido que mesmo no caso do Signal, seria estudado alguma forma da mesma “contribuir”. :\