Práticas de ódio “fictícias” em jogos eletrônicos

Acredito que todes tenham visto o lançamento do jogo mais recente da série The Legend of Zelda poucos dias atrás.

Uma das mecânicas do jogo anterior que retornam nesse envolve os personagens conhecidos como “koroks” — criaturinhas simpáticas mas tão recorrentes que podem eventualmente irritar alguns jogadores.

Além disso, esse jogo tem uma mecânica nova que envolve a construção de máquinas e motores. É possível inclusive combinar essas máquinas com dispositivos que produzem chamas, entre outros.

Bom, acontece que não foi preciso mais do que duas semanas de existência do jogo para que alguns jogadores começassem a criar máquinas voltadas exclusivamente à tortura dos koroks.

E quando eu vi isso eu confesso que me senti incomodado. OK, é só um jogo eletrônico e nada disso existe (e nem vou entrar naquela discussão boba sobre jogos influenciarem em comportamentos violentos) mas é impossível não olhar pra essas imagens de tortura fictícia e não ficar revoltado (por mais patético que isso soe).

Eu olho pra essas imagens e me vêm à cabeça aqueles casos de gente cretina que tortura animais das formas mais doentias.

Eu acho sinceramente que a gente devia começar a falar sobre empatia transumana e até mesmo sobre práticas de ódio em ambientes digitais como esses. Sei lá, pode parecer bobo (até porque o mundo “real” está aí com zilhões de problemas para serem resolvidos antes) mas eu acho que essas práticas de “tortura digital” não são uma mera brincadeira subversiva da mecânica dos jogos, mas algo realmente complicado (um reflexo doentio das práticas de humor e entretenimento no mundo “real”).

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9 comentários

  1. Existe uma novela escrita pelo Ted Chiang (autor do conto que inspirou o filme ‘A chegada’) chamada The Lifecycle of Software Objects, a trama justamente se dá em torno da tortura de pequenas criaturas digitais – que possuem IA.

  2. Me recordei de uma discussão que tive com uns amigos anos atrás, sobre um episódio de Black Mirror, Striking Vipers.

    A discussão despendeu para se é crime ou não ações que realizamos em meio virtual.

    Exemplo, jogos de guerra, GTA, etc, existe uma tolerância alta em que roubar, matar e assassinar nesses jogos é OK.

    Ai lembramos que existem jogos de amor, em que os claramente os personagens tem traços infantis, e ficamos em dúvida, será que é aceitável um jogo onde seu personagem tem relações sexuais com animais? E aí pode entrar o tema desse post, além de relações sexuais, seria aceitavel em um jogo onde você pode e deve matar inimigos humanos, permitir que você mate e torture animais? Porque essas prática contra NPCs humanos é tolerado e contra animais não é?

    Enfim, lembro que não chegamos a uma resposta simples para esses questionamentos.

  3. Concordo com o Ghedin, acho que isso seria humanizar demais os personagens que são só, bem, personagens.
    E porque só os koroks merecem a nossa simpatia? E os inimigos do jogo que descemos a porrada, espada, bomba, flecha, etc?
    E jogos como GTA? Lembro de uma missão onde deveríamos torturar um NPC, que achei bem pesado na época. Mais até que a violência “normal” do jogo
    Lembro também da época do Oblivion, onde o pessoal achava maneiras diferentes de matar o personagem Adoring Fan
    Enfim, fico mais preocupado com as pessoas que acham esses sadismos divertidos do que com os jogos em si

  4. Associar tortura de animais com pixels de joguinho é meio complicado. Se fosse um jogo realista até entenderia um incômodo de ver a cena, mas é cartoon, não tem conexão nenhuma. O equivalente para realidade seria “torturar” um ursinho de pelúcia talvez.

  5. Não joguei, nem vi o que são esses bichos, mas concordo que é um troço que não pode ser estimulado. Independentemente dos NPCs, isso estimula e reforça esse comportamento nas pessoas que jogam.

  6. Lembra do “circo da carne” do filme AI? Aquelas sequencias de tortura dos robôs são tensas.

  7. É uma representação, então acho o paralelo com maus tratos a animais meio forçado. Esses existem, sentem as coisas; NPCs em um joguinho, não, são zeros e uns decodificados em sons e imagens. Talvez se um dia essa representação atingir níveis de verossimilhança convincentes o debate se torne necessário, mas mais pelo potencial de influência de quem está do outro lado da tela.

    De resto, embora seja um passatempo lamentável, acho que o maior perigo é humanizar seres inanimados/digitais, sob o risco de daqui a pouco ficarmos igual aquela galera que acha que o ChatGPT tem consciência.

    1. Então, essa é uma abordagem “materialista” do problema e ela faz todo sentido.

      Porém…

      Fico pensando na capacidade dessas coisas construírem apelo e até mesmo empatia. Em certo sentido há aí uma agência difusa no processo de jogar que afeta o jogador tanto quanto ele também afeta o jogo. Justamente porque representações são ao mesmo tempo relacionais e autônomas que elas assumem essa possibilidade de agência.

      E para além do problema de humanizar essas criaturas digitais (com o qual concordo) acho que poderíamos reverter a coisa pela via do transumanismo, reconhecendo ali possibilidades não humanas de construção de afetos.

      É claro, tudo isso é mediado por uma grande corporação interessada na mercantilização de nossos afetos. Mas acho que a coisa é mais complexa.

      1. Eu senti algo parecido quando vi uns vídeos promocionais dos Mortal Kombat mais recentes, que mostram com realismo anatômico o despedaçamento das personagens causado por violência pura. Senti um mal estar e trouxe o debate para o post livre, na época.

        O afeto com coisas inanimadas é algo antigo, né? O fã captura essa relação — e mesmo ali, quando ela se dá entre dois seres humanos, é algo que me é difícil compreender a partir de certo ponto, quando a relação muda de admiração para adoração. Você provavelmente já leu a respeito do ELISA, o primeiro chatbot de que se tem notícia. A gente se apega a qualquer coisa que emule afeto, e não é de hoje. (Por outro lado, e voltando ao debate original, eu não consigo me afeiçoar a personagens de video game por estar no controle deles, ou seja, ser “eu” ali e, ao mesmo tempo, outra persona. Entre outros fatores, conscientizar-me disso me afastou totalmente de video games.)

        Em outras mídias, em especial o cinema e a literatura, as relações de afetos entre pessoas e seres inanimados/fictícios é bem aceita, ainda que nem sempre seja saudável (para o humano, no caso). Não acho que o fato do video game te colocar no controle seja uma distinção grande o suficiente para gerar (novas) preocupações.