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Google e o “greenwashing” da privacidade

Mulher de calça jeans e casaquinho, em um ambiente ao ar livre com árvores, e ao fundo uma enorme tela com os dizeres, em inglês, "Priority by design".

Depois de passar em branco em 2020 por causa da pandemia, o Google retomou seu grande evento anual para desenvolvedores, o Google I/O, nesta semana. (Um resumo de 16 minutos.) Na abertura, a empresa apresentou uma nova identidade visual para seus produtos, o Android 12 e, curiosamente, recursos de privacidade. Sim, o Google.

O Android 12 foi o destaque da apresentação. Esta versão traz a maior mudança visual desde a introdução do Material Design, em 2014. A nova linguagem visual do Google se chama Material You. “E se a forma não apenas seguisse a função, mas seguisse também a sensação?”, perguntou Matías Duarte, que lidera o design do Google, antes de apresentar a nova cara do Android e, no futuro, dos demais produtos da casa.

Em termos menos esotéricos, no Material You as interfaces se adaptam automaticamente a tamanhos de tela e cenários distintos, e usam cores que seguem uma referência definida pelo usuário — no caso do Android, o papel de parede. É bem legal e bonito (veja em vídeo).

Essa parte da apresentação, a do Android, também trouxe muitas novidades em privacidade, o que sempre nos dá um nó no cérebro: como o Google, que se tornou a maior empresa de publicidade digital do mundo devassando a privacidade dos seus usuários, pode prometer… privacidade a seus usuários?

Tudo se resume ao que se entende por privacidade. Sob certa perspectiva, as novidades do tipo do Android 12 são interessantes e úteis. Tem muita coisa “inspirada” no iOS (indicadores de câmera e microfone ativos, localização aproximada para apps, processamento de dados no próprio dispositivo), mas também sobrou espaço para novidades, como uma “linha do tempo” com apps que acessaram recursos do celular e botões que desativam câmeras e microfone por completo, em todos os apps.

A proteção à privacidade que o Google oferece é topo de linha — de verdade. As chances de seus arquivos no Google Drive ou e-mails do Gmail vazarem são mínimas, e o Google alardeia que não vende seus dados para ninguém — e é verdade. Para esse tipo de privacidade, que quase se confunde com segurança, é indiscutível que o Google faz bonito.

Só que existe outro tipo de privacidade, um em que o Google desconsidera e exclui a si mesmo como potencial violador: aquele que diz respeito ao que é feito dos dados pessoais que empresas como o próprio Google coletam — neste caso, no Android, em seus apps, na pesquisa, sabe-se lá onde mais.

O Google faz essa coleta incessante de dados pessoais para alimentar sua máquina multibilionária de publicidade. Isso é grave. Quando o Google anuncia “melhorias” nesse aspecto da privacidade, são melhorias sempre pontuais, dentro de uma margem de segurança para seus negócios. “Agora você pode excluir seus dados antigos automaticamente”, sim, mas só porque eles provavelmente não valem tanto quanto os dados mais recentes. E não espere ver no Android algo parecido com a Transparência no Rastreamento em Apps (ATT, na sigla em inglês), recurso do iOS 14.5 que obriga aplicativos a obterem o consentimento do usuário para rastreá-los em outros apps e na web. Se prejudica os negócios do Google, o tom da conversa muda ou nem tem conversa, como (não) vimos no I/O.

Fica a sensação, ao ver executivos bem ensaiados falando de privacidade com tanta paixão no belíssimo gramado do campus da empresa em Mountain View, de que o Google faz uma espécie de “greenwashing” com a privacidade. Conhece esse termo, “greenwashing”? Ele descreve indústrias que repaginam a apresentação dos seus produtos para que eles seja percebidos como “saudáveis”, “naturais” ou “ecológicos”. Tipo quando uma fabricante de miojo muda a embalagem e passa a usar uma com plástico fosco, nas cores marrom e verde e com nomes de nutrientes e ingredientes “in natura” estampados (um caso real). A embalagem muda, mas o miojo cheio de sódio e química continua o mesmo dentro dela.

O Google também anunciou um punhado de recursos que usam inteligência artificial, incluindo uma nova ferramenta que naturaliza conversações com robôs chamada LaMDA. Isso pode até soar legal, mas apenas se você não souber que há poucos meses o mesmo Google demitiu duas líderes da sua equipe de ética em IA por elas terem alertado sobre a inclinação desses sistemas à reprodução de linguagem racista e abusiva, vieses de raça e de gênero e de serem incapazes de distinguir fato de ficção.

Seria esperar muito do Google que a empresa ocupasse preciosos minutos do seu comercialzão anual para fazer uma autocrítica. Ainda assim, vale a pena ficar atento a esses eventos, tanto pelas coisas legais quanto por esses malabarismos linguísticos que tentam varrer para debaixo do tapete as críticas. Por isso, é preciso estar sempre atento. O Google I/O deste ano reforçou aquele nosso velho mantra: não se pode confiar às grandes empresas a resolução dos problemas que elas próprias criaram.

Foto do topo: Google/Divulgação.

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11 comentários

  1. Primeiro lugar que leio que falou dessa questão da privacidade “”falsa””. Eu sempre penso isso, não adianta muita coisa eles prometerem privacidade em relação aos apps utilizados, se eles próprios coletam tudo quanto é coisa, privacidade zero! Idem à Apple.

  2. Além do “greenwashing” esses anúncios com o foco em privacidade tem cara de resposta a Apple, que nos últimos tem batido forte no marketing nessa questão.

    1. Estou bem curioso pra ver como o marketing da Apple em relação à privacidade de seus usuários vai lidar com a questão de como a mesma Apple é proativa em censurar apps e fornecer dados dos usuários a regimes totalitários como na China. Vejo ela sempre bater na tecla da privacidade e como a empresa é hipócrita nesse sentido.

      Aquele discurso de que o iPhone é a única plataforma segura para jornalistas e ativistas que atuam cobrindo/combatendo esses regimes cai totalmente por terra. Esse pessoal não tem uma plataforma segura para se comunicar.

      1. Por sinal, não vi o Ghedin comentando sobre a matéria recente do New York Times falando sobre as concessões que a Apple está fazendo para se manter em território Chinês.

        1. Eu salvei para ler, mas ainda não consegui. Malz.

          Pelo que li por cima, é uma concessão que a Apple faz em território chinês e apenas lá, tanto que montou um data center exclusivo para o país. Por lado, é uma hipocrisia — afinal, valores não deveriam ser flexíveis de acordo com as conveniências de cada local. Por outro, é business as usual e, até onde se sabe, uma prática restrita à China.

          A gente já viu o que acontece quando empresas ocidentais peitam o PCC — elas perdem. Google peitou e saiu, Uber tentou ganhar o mercado chinês e perdeu, e por aí vai. No caso da Apple, a China é duplamente importante: é o seu segundo maior mercado (às vezes, o primeiro) e é a sua principal fábrica de dispositivos. E, como eu sempre digo, para empresas de capital aberto o que importa, no fim das contas, é dinheiro, então embora seja meio decepcionante, não chega a ser uma surpresa. (Acho que nenhuma empresa banida de lá saiu por um lapso de consciência; o Google, que mais se aproximou de algo assim, eu acho que foi uma blefada que deu muito errado, e tinha o agravante de que os chineses viviam tentando hackear usuários do Gmail, que meio que também ajudou a melar todo o negócio.)

    2. A Apple sempre bateu forte no quesito privacidade em relação a iPhones. Já que é o principal calcanhar de Aquiles do Google/Android.

  3. Eu fico realmente curioso de como os recursos do Android 12 vão ser aproveitados no LineageOS e outras roms que podem ser “google-less”

    1. Privacidade em celular só t em dois OS:
      GrapheneOS e CalixOS e um pouco em Lineage com MicroG Blokada e etc
      O resto é blefe.
      A máxima pelo que entendi dos meus tempos de Reddit é:
      Feature Phone (Mudita Phone ou Light Phone ou aqueles simplezinho que não seja aquele nokia banana phone)>Pixel3/4 com Graphene ou Cálix>Lineage OS Microg/Iphone>LineageOS Gapps>StockRom