As nascentes da tecnologia de consumo nas últimas décadas têm estado longe do Brasil. Ora nos EUA, ora no Japão, eventualmente na Europa, as obsessões de boa parte da nossa população com chips e bits e telas não vêm daqui e, por serem coisas novas e de alcance global, costumam ter nomes em inglês. E a forma como esses afetam o nosso português é fascinante.
Esse lampejo me veio semana passada, quando joguei “screenshot” e “tirar print” no Google Trends, uma ferramenta do Google que retorna a popularidade de termos consultados em seu buscador ao longo do tempo, e que permite filtrar as consultas por país. Veja como o segundo ultrapassa o primeiro, na consulta restrita ao Brasil, mais ou menos na época em que os smartphones começaram a engrenar no país:
(Se você só quer saber como tirar print do seu celular, clique aqui.)
“Print” está grafado nos nossos teclados físicos e é, ainda, o verbo “imprimir” em inglês. Embora eu não ache que em 2012 uma massa enorme de brasileiros tenha começado a pesquisar alucinadamente por tutoriais de impressão em inglês, são asteriscos que merecem ser mencionados. Uma das fraquezas do Google Trends é a mesma que há décadas se mostra um obstáculo para a tradução automática: a ausência de contexto.
Foi por isso que fiquei feliz com uma resposta que recebi da Lana, no Twitter. Trata-se de uma prova ainda mais contundente da maleabilidade da língua e a confirmação de que esse “print” aí se refere ao registro gráfico da tela de um sistema computadorizado mesmo, nada tendo a ver com impressoras. Essa prova se revela ao inserirmos o verbo “printar” na consulta e ele aparece próximo a “screenshot,” prestes a tomar o segundo lugar desse ranking:
Outro caso curioso. Por um bom tempo a TIM chamou mensagens de texto (SMS) de “torpedo” em suas peças publicitárias. Em meados dos anos 2000 e depois, na Copa do Mundo da África do Sul, em 2010, o programa de TV Domingão do Faustão lançou promoções baseadas em mensagens de texto com referências ao termo: “Torpedão do Faustão” e, no evento futebolístico, “Torpedão Campeão.” Não é de se estranhar, pois, que “torpedo” tenha sido mais popular que “SMS” e, naquele período das promoções, mais até do que “mensagem.”
Novamente: é possível que uma porcentagem dessas pesquisas por “torpedo” tenha sido feita por aficionados ou ou gente intrigada por materiais bélicos, mas é improvável que a maioria não estivesse pesquisando coisas referentes ao SMS. Outra curiosidade são os picos de “mensagem,” sempre em dezembro, quando o espírito natalino aflora e queremos desejar paz e sucesso para todo mundo :)
Temos, também, o fenômeno selfie. Aqui não se trata de substituição porque o termo em português a que se refere o neologismo inglês nunca foi popular. “Autorretrato” jamais esteve presente no léxico do brasileiro (ao menos, do que usa o Google), mas “selfie” entrou com força no nosso dia a dia e, hoje, é tão difundido que para muita gente, contrariando o próprio sentido da palavra, ela já é sinônimo de foto — quem nunca leu/ouviu alguém pedindo a outra pessoa para “tirar uma selfie de mim”?
E só a título de curiosidade, veja como uma tendência pode ser demolida por outra tendência. Se “autorretrato” nunca foi lá muito popular, “foto no espelho,” sim. Em 2012, quando “selfie” começava a pegar lá fora e por aqui, celulares com câmera e câmeras digitais ascendiam rapidamente, tirar foto no espelho era prática comum para uma galera considerável. No final daquele ano, MC Bola lançou um hit cujo refrão dizia “(…) tira foto no espelho pra postar no Facebook” e, certamente, contribuiu para o pico do gráfico abaixo, que ocorreu em fevereiro de 2013:
(Música e tecnologia, como já vimos, estão intimamente ligadas e, às vezes, essa relação quebra a barreira da produção e chega às letras das canções.)
E para não ficar a impressão de que tais transformações são exclusivas do português, um último exemplo global.
Os emojis foram incorporados pelo Unicode em 2009 e até alguns anos depois, eram um negócio bastante localizado, que fazia sucesso apenas no Japão. (É por isso que há tantos elementos daquela cultura entre os desenhos.) Representações gráficas do tipo já eram comuns, mesmo as que utilizavam desenhos em vez de sinais tipográficos para formarem carinhas — lembremos dos emoticons do MSN Messenger, por exemplo.
Porém, graças ao iOS e, depois, à expansão dos emojis para outros sistemas, “emoticon” não tem mais espaço na nossa cultura. As vantagens dos emojis são fáceis de identificar (padronização, suporte por múltiplos concorrentes, variedade); não é de se estranhar que eles tenham tomado o mundo e o papel de “emoticon” na nossa cultura. O gráfico abaixo evidencia isso — ele contempla pesquisas feitas no mundo inteiro:
Nossa comunicação é tão adaptável que até emojis insuspeitos são ressignificados com o tempo. O Yelp, um app de avaliações e indicações de estabelecimentos, permite pesquisar por locais usando emojis. Outro exemplo é emoji da berinjela, que virou sinônimo de pênis. O Instagram, que recentemente liberou pesquisas por emojis, tratou de bloqueá-lo, o que levou à mobilização #FREETHEEGGPLANT. Pesquisas por “penis” e termos relacionados também não retornam resultados no app.
A língua é viva, ela está em constante mudança e não há gramática ou ortografia do mundo capaz de conter esse processo. Que linguista foi capaz de prever a transformação do emoji da berinjela em um símbolo fálico? A beleza da coisa (da língua, não da berinjela!) reside aí: ela é de todos e de ninguém, e está sujeita às mudanças mais malucas.
Certa vez li o trecho de um livro (ou seria um artigo?) do Prof. Dr. Sirio Possenti, da Unicamp, sobre o assunto:
“Alguns sonham com uma língua uniforme. Só pode ser por mania repressiva ou medo da variedade, que é uma das melhores coisas que a humanidade inventou. E a variedade linguística está entre as variedades mais funcionais que existem. Podemos pensar na variação como fonte de recursos alternativos: quanto mais numerosos forem, mais expressiva pode ser a linguagem humana. Numa língua uniforme talvez fosse possível pensar, dar ordens e instruções. Mas, e a poesia? E o humor? E como os falantes fariam para demonstrar atitudes diferentes? Teriam que avisar (dizer, por exemplo, ‘estou irritado’, ‘estou à vontade’, ‘vou tratá-lo formalmente’)?”
Quando estamos falando de tecnologia, é como se esses processos metamórficos da língua fossem catalisados. O ritmo acelerado com que novidades surgem e novos assuntos entram na agenda pressiona a língua e a força a se adaptar. E no fundo a gente gosta do novo, do diferente, então muitos acabam preferindo essas formas novas de expressão em detrimento das estabelecidas, especialmente quando essas não são lá muito difundidas — vide o caso do autorretrato.
Quando alguém transmite um vídeo pelo Periscope, Meerkat ou YouNow, o que estamos fazendo? Que verbo utilizar para sintetizar a transmissão em tempo real de vídeo gravado com um celular e consumido em outros celulares? Em breve, se outras variáveis como o sucesso do Periscope colaborarem, teremos essa resposta. E ela não virá da academia.
Ah sim: como tirar print do seu celular
Você que caiu nesta página buscando aprender a tirar print do seu smartphone, sua viagem não foi perdida.
No Android, o comando padrão é apertar ao mesmo tempo os botões de liga/desliga e de abaixar o volume.
Os celulares da Samsung que rodam Android usam um comando diferente. Neles, aperte ao mesmo tempo o botão Home (o físico da frente do aparelho) e o de liga/desliga.
Este comando, botão Home e liga/desliga, também vale para todo iPhone.
No Windows Phone, tire um print apertando os botões liga/desliga e de aumentar o volume. Note que ele vale para a versão 8.1 e posteriores — antes o comando era outro.
Agradecimentos aos leitores do nosso grupo secreto (só para assinantes) que ajudaram um bocado sugerindo exemplos para ilustrar este post. Valeu!
Existe uma palavra que está completamente enraizada no nosso vocabulário, mas que foi simplesmente uma aportuguesada. Salvar, é uma palavra que existe, claro, mas o termo em português para o “save” no computador seria gravar, mas vejam que esse termo é pouco utilizado pelo usuário comum. Assim como o verbo deletar não existia, e poucos usam apagar, mas o “deletar” é completamente normal hoje. Eu pessoalmente, mais uma vez, sei lá porquê, gosto mais de “apagar”.
Atualmente vejo muitas pessoas dizerem “vou mandar um whats…” pra quando vão enviar uma mensagem pelo aplicativo.
Já não vejo ninguém falar em enviar uma mensagem. As pessoas simplesmente consideram que todos possuem um smartphone e o WhatsApp instalado, assim todo mundo envia e recebe um “whatsapp”.
Eu pessoalmente tendo a ser resistente a essas expressões. Sempre prefiro falar que enviarei uma mensagem e pergunto se pode ser pelo WhatsApp.
Não acho que passe pela cabeça das pessoas, mas vai que a outra não possui smartphone ou o aplicativo instalado.
essa questão linguística é assustadora. Marcos Bagno, antes da ascensão da massificação da internet, já descrevia que as formas que se tem de falar diferem-se das formas que se tem de escrever. hoje é algo semelhante, mas na contramão: a forma que se escreve se difere da forma que se fala, em detrimento da grande expansão da comunicação textual (e informal).
eu atribuiria o “fenômeno emoji” também ao WhatsApp.
Excelente post! Muito bacana ler algo que consiga aproximar tão bem a linguística e a tecnologia.
Muito bom! Os linguistas adoram isso ou não. Rsrsrs. Pesquisei sobre selfie quando ela foi considerada a “palavra do ano “.
Escrevi um post sobre “selfie palavra do ano” nos primeiros dias do Manual do Usuário: https://www.manualdousuario.net/selfie/ E parece que foi ontem!
Deus tá vendo esse seu título caça-paraquedista aí… :P
O pior é que a ideia veio de um desses. Vi um blog gringo especializado em Android publicar um “guia” ensinando a tirar print em três (!) páginas. Aí fiquei intrigado e fui ver no Google Trends se a procura justificasse o vexame, e era mesmo muita gente pesquisando o tema. Dali cruzei “tirar print” com “screenshot” e o resto é história — essa contada aí em cima :)
três páginas!?
share it, please! :)
Acho ruim dar audiência para quem comete tal atrocidade, mas… http://www.androidcentral.com/how-to-take-screenshot-lgg4
Acho ruim dar audiência para quem comete tal atrocidade, mas… http://www.androidcentral.com/how-to-take-screenshot-lgg4
Muito interessante! É inevitável que a língua se altere com o tempo, afinal ela não foi criada em uma base de formalismos.
O problema das pessoas com as mudanças é porque ao aprendermos regras de gramática, parece que estamos mais perto da matemática que da física. Em outras palavras, parece que é algo definido com axiomas ao invés da descrição de um fenômeno social. A gramática não define o idioma, ela descreve.
Excelente matéria.
Nossa…artigo muito bom…eu li imitando a sua voz. jaijauhuahua
MANO, tem outra palavra em inglês que quem trata com tecnologia usa muito. “review”….comecei a ver essa palavra com força em sites (outra) brasileiro a mt tempo…nem sei como anda no trends, mas deve ser bem usada.
No ramo de desenvolvimento de software, é comum o verbo “setar” (to set), que seria “atribuir” (valor a uma variável).
Até por padronização, em ambientes de produção, é comum convencionar termos em inglês. Imagine a zica que seria traduzir esses termos em projetos multinacionais?
Até por padronização, em ambientes de produção, é comum convencionar termos em inglês. Imagine a zica que seria traduzir esses termos em projetos multinacionais?
me lembrou do “debuga”
Mais um termo que tem tradução (“depurar”), mas é tão estranho que chega a parecer errado, hehe
Essas mudanças na linguagem são realmente muito interessantes. Mas fico me retorcendo de agonia quando leio/ouço uma aplicação incorreta das palavras…
O que mais vejo por ai é usar “not” para diminutivo de notebook, o que pra quem entende inglês chega a doer no dedão do pé. Assim como o exemplo do “tira uma selfie de mim”.
Esqueceste do fenômeno “manda nudes” :P
Excelente texto, as usual. :)
Sim, é um caso similar ao do autorretrato — a menos que esteja perdendo a expressão totalmente em português que veio antes do “manda nudes.”
Sim, é um caso similar ao do autorretrato — a menos que esteja perdendo a expressão totalmente em português que veio antes do “manda nudes.”
Que artigo fantástico, Ghedin!
Sempre adorei observar essas transformações na língua decorrentes do advento da tecnologia. Às vezes sou meio averso a essas mudanças, como o termo “selfie” sendo utilizado como substituto para foto. Mas como a língua é dinâmica, entendo que essas flutuações sempre existiram e continuaram a existir, algumas ficando e outras sendo esquecidas com o advento de novos termos (como o bastão de selfie que virou PAU de selfie).
Enfim, fico mais feliz que as nossas contribuições no grupo foram lembradas no texto. :>