O direito ao aborto, o perigo do TikTok e o terror norte-americano

Mulher branca, com batom e touca pretos e olhando para a câmera, segura um cartaz no meio da multidão. No cartaz, lê-se (em inglês): “Quando a injustiça vira lei, a revolta vira dever”.

Ao editar o Manual do Usuário, um ponto de atenção a que me atenho é com quem estou falando. Não é raro encontrar publicações de tecnologia brasileiras que parecem publicações norte-americanas traduzidas para o português, com a cobertura de produtos que sequer são vendidos aqui e de polêmicas que, no máximo, soam como curiosidade a nós.

É difícil explicar o porquê disso. Não por falta de motivos, mas pelo excesso deles: o imperialismo norte-americano, a síndrome de vira-lata, nossa dependência econômica do dólar, o fato de que eles, às vezes, fazem coisas muito legais. Felizmente, não é o assunto que quero debater.

Esse aspecto da nossa cobertura foi posto à prova esta semana, na ressaca da decisão da Suprema Corte dos EUA, na última sexta (24), que reverteu o direito ao aborto conquistado pelas norte-americanas há décadas (caso Roe v. Wade, de 1973). De carona, na véspera os mesmos juízes consideraram o porte de armas um direito fundamental.

Que pese o lamento por tantos retrocessos para eles (afinal, temos empatia) e o mimetismo estúpido e perigoso que o atual governo brasileiro faz dos piores vícios da sociedade norte-americana, a questão era: o que isso importa a nós?

O debate chegou aos bastidores do Guia Prático, nosso podcast semanal. Jacque sugeriu de abordar a privacidade de dados à luz do caso Roe v. Wade; eu, fiquei meio reticente.

Aqui, o buraco é mais embaixo. O aborto sempre foi e continua sendo ilegal no Brasil, salvo poucas exceções. E mesmo esses poucos direitos são, com frequência, violados, às vezes por aqueles que têm o dever funcional de fazê-los valer, como a juíza e a promotora que assediaram uma criança de 11 anos estuprada para que mantivesse uma gravidez absurda, ou quando uma atriz segue todo o protocolo legal para doar um bebê fruto de um estupro e, ainda assim, é escrachada por abutres que se dizem jornalistas.

Nesse cenário, a preocupação com dados de aplicativos de ciclo menstrual soa algo distante, menos relevante. (Não é, mas soa.) Por que nos importarmos com isso, um drama real para mulheres norte-americanas, quando temos questões mais graves e urgentes em casa?

No fim, usamos o caso dos EUA como base para um questionamento mais amplo. Ninguém lê políticas de privacidade e o Estado, mesmo passando leis de proteção a dados pessoais — caso da LGPD no Brasil —, ainda é bastante falho em conter negligências diversas e a sanha corporativa que transforma dados pessoais em dinheiro à revelia dos seus donos legítimos — nós, eu e você.

Esse desenrolar, que culminou num ótimo papo com a Yasmin Curzi, da FGV, no Guia Prático, me levou de volta aos Estados Unidos — figurativamente.

Nesta semana, Brendan Carr, comissário da FCC (espécie de Anatel deles), publicou uma carta pública pedindo aos CEOs da Apple e do Google, Tim Cook e Sundar Pichai, para que removam o TikTok das suas lojas de aplicativos.

O TikTok é um interessante caso de estudo. Pela primeira vez, um aplicativo estrangeiro (para os norte-americanos) se tornou hegemônico por lá. Pela primeira vez, os norte-americanos sentem na pele o desconforto que impõem há décadas, por mérito, pioneirismo ou qualquer outro motivo (isso é aberto ao debate), ao resto do mundo.

A reação não poderia ser pior, mesmo considerando o detalhe relevante desse app estranho vir da China, maior rival comercial dos EUA e um pesadelo de vigilância estatal. Àqueles que acreditavam que a paranoia estava restrita ao governo lunático de Donald Trump, é uma surpresa desagradável — e um vislumbre de que, ganhe quem ganhar nas eleições brasileiras de outubro, nossos próximos anos serão conturbados, para dizer o mínimo.

Até hoje, ninguém provou que o TikTok faça algo além ou pior do que as redes sociais norte-americanas fazem. Pelo contrário, há provas de sobra dos descalabros, de absurdos que empresas norte-americanas já cometeram, em casa e fora dela. Meta/Facebook, Uber, Google — todas já afrontaram leis, direitos e até a soberania de basicamente todo o mundo.

Pior: os norte-americanos já foram pegos grampeando as comunicações de presidentes de outros países (inclusive a do Brasil) e dos seus próprios cidadãos, com a conivência de… empresas de tecnologia locais. Esse assunto costuma ser varrido para debaixo do tapete, mas basta uma pesquisa por “prism” ou uma passada pela Wikipédia para refrescar a memória.

TikTok ou Instagram, o modelo quebrado é o mesmo e não tem bandeira, é um fenômeno global. E, junto à ameaça da transformação de dados de aplicativos em armas jurídicas, como está acontecendo nos EUA com os de controle de ciclo menstrual, deixa evidente a importância de termos políticas e leis de privacidade e a necessidade de um esforço para popularizar o tema, para conscientizar mais pessoas dos riscos envolvidos ao ingressar em uma rede social ou baixar um aplicativo de saúde.

Agradecimentos à Yasmin Curzi pelos apontamentos no texto antes da publicação.

Foto do topo: risingthermals/Flickr.

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12 comentários

  1. me irrita um pouco essa super cobertura sobre casos dos EUA. Apesae de influenciados pelo soft power nossa cultura (que é refletida na forma e conteúdo de nossa constituição ) é outra. basta ver o quanto alguns valores defendidos com unhas e dentes pelos americanos simplesmente nao ressoam aqui (a tal liberdade ao pé da letra é um exemplo). Infelizmente figuras deprimentes como a família Bolsonaro e seus influencers tentam incutir essa mentalidade por aqui.
    ja teve caso de gente alegando emenda americana nesse brasilzão.

    retrocessos nos americanos precisam ser lamentados, claro, mas nossa realidade ainda está dramaticamente pior.

    é como se o plano de redução de emissões de gases de efeito estufa se pautasse pela redução das termelétricas (realidade europeia-americana) em vez de atacar o desmatamento, de tanto que a mídia americana empurra pra gente a solução para os problemas deles.

  2. Aqui tudo é bem diferente, o que ocorre no USA não se aplica a nós nem por bem e nem por mal.

    O governo ter como espiar o que fazemos é um delírio. O governo é a entidade tecnicamente mais incompetente da nação, e se UM lá dentro tem a capacidade de espiar algo falta verba, falta interesse, falta organização, falta tudo para ter uma base relevante e pior ainda fazer algo relevante com essa base. Simples: BRASILEIRO ODEIA TECNOLOGIA (ou simplesmente é muito burro para compreender, dá no mesmo). Nossos representantes são eleitos por essa sociedade.
    O que vem ao ponto de monitorar app para ciclo menstrual: todos no governo tem mais o que fazer (normalmente nada ou pior ainda quando algo). Não imagino uma realidade onde algo tão técnico seja aplicado aqui.

    Sabemos que as big-tech nos espiam se desejarem mas… hey, news: não somos mercado. Não existe grande interesse em fazer nada focando em nós. Ou se existe… aí eu viro um brasileiro: E DAI? Sou rastreado pelo google 24/7 e o que perco com isso? Na real ganho… procurei uma churrascaria para ir e e descobri que, na minha escolhida, “voce visitou esse lugar a 5 anos na data xxx”. Legal essa info, e ta na hora de ir novamente!
    A voz do brasil: empresas ficam me espionando e dando propaganda relevante para min? OK, e daí? Pergunto o mesmo! Se é para ver propaganda melhor ser de um HDD que de uma papinha de nenem.

    Por ultimo: sites de tecnologia .br apenas em rss para ver 2 ou 3 noticias locais que prestam por semana. Mas não é completamente culpa deles. Nada relevante ou animador acontece nesse submundo aqui…

    1. E eu achei que tivesse pesado no texto, hehe.

      Discordo basicamente de todos os seus argumentos, André — nada pessoal, e tentarei explicar o porquê.

      O governo é a entidade tecnicamente mais incompetente da nação.

      Só isso já é motivo de sobra para ficar preocupado e atento aos movimentos do governo. O mau uso de dados pessoais não é, necessariamente, algo consciente. E a julgar que em muitas situações não há escapatória no sentido de ceder dados ao governo, fica mais urgente esse escrutínio.

      O que vem ao ponto de monitorar app para ciclo menstrual: todos no governo tem mais o que fazer (normalmente nada ou pior ainda quando algo). Não imagino uma realidade onde algo tão técnico seja aplicado aqui.

      O risco, nesse caso, não é da vigilância estatal, mas da instrumentalização dos dados de empresas. Mesmo nos EUA (especialmente lá), esse é o verdadeiro risco.

      Se o aborto for criminalizado em um estado, o equivalente deles ao Ministério Público ou alguém incomodado por um aborto poderia pedir, na Justiça, para que um aplicativo de controle do ciclo menstrual revelasse dados de uma mulher que abortou.

      Esse é um bom exemplo de como dados que geramos em aparente segurança podem, de uma hora para outra, serem usados contra nós. Isso vale para o seu histórico no Google também.

      Sabemos que as big-tech nos espiam se desejarem mas… hey, news: não somos mercado.

      Não fossemos mercado, elas não estariam aqui. Somos sim, e somos grandes em alguns segmentos. Não tão rentáveis como EUA e Europa, mas há um volume grande de pessoas monetizáveis aqui.

      Por ultimo: sites de tecnologia .br apenas em rss para ver 2 ou 3 noticias locais que prestam por semana. Mas não é completamente culpa deles. Nada relevante ou animador acontece nesse submundo aqui…

      Compartilho a estratégia com os especializados, mas discordo de que nada animador ou relevante aconteça por aqui. Sugiro acompanhar a newsletter do Manual do Usuário para ficar por dentro das coisas emocionantes do nosso Brasil em tecnologia :)

    2. Eu sugiro que você vá morar nos EUA, de verdade. Eu até gostaria de debater em como absolutamente todos os pontos que você colocou estão errados, mas eu tenho o pressentimento de que serão palavras ao vento.

      De verdade, eu não suportaria viver num ambiente tão desprezível e sem perspectiva como esse que você se enxerga.

      1. Claro que tu ta certo! Ser critico É ser infeliz! 45 anos de experiencia de brazil traz amargura pois infelizmente comecei a pensar e prestar atenção muito cedo.

        Mas então vamos diferente: se o que eu falei é tudo errado cita exemplos reais disso, não teóricos.
        PS: sim claro que exagerei em “não somos mercado”

        1. O Ghedin já citou e tu não respondeu ele. Vou até tentar complementar:

          capacidade de espiar algo falta verba, falta interesse, falta organização, falta tudo para ter uma base relevante e pior ainda fazer algo relevante com essa base.

          Este último governo que muitos que são estilos “comentaristas do Gizmodo/G1/Chans/Incels” ajudaram a por no poder está tentando investir em softwares de espionagem para atacar opositores. Isso já diz muito – e justamente o contrário do que você diz.

          BRASILEIRO ODEIA TECNOLOGIA (ou simplesmente é muito burro para compreender, dá no mesmo).

          Rapaz, tem um ditado que diz que “todo generalismo tende a ser burro”.
          Eu tou por fora de números, mas noto que a difusão do uso do celular, da adoção do Pix, da cultura do uso de aplicativos para atividades cotidianas (Uber, iFood) diz o contrário.
          Eu na verdade tenho uma ideia um pouco contrária a sua, que só muda parte da sua frase: Brasileiro ODEIA mal design tecnológico. “Design oculto” (quando alguém dificulta acesso a menus relevantes para condicionar a pessoa a usar algo que interessa a empresa) é um exemplo. No último Post Livre falei de um exemplo destes (um aplicativo de aquisição de bilhete de transporte que força você a tentar usar o cartão de crédito deles).

          O que vem ao ponto de monitorar app para ciclo menstrual: todos no governo tem mais o que fazer (normalmente nada ou pior ainda quando algo). Não imagino uma realidade onde algo tão técnico seja aplicado aqui.

          Espero que o Ghedin me perdoe pelo tom que usar agora – e já fica um aviso que provavelmente terá um “editado” se o Ghedin ver que abusei.

          Vamos fazer a seguinte analogia, André. Se criam um app para investigar quantas camisinhas você comprou, se você usa anticoncepcional masculino ou fez vasectomia ou quantas vezes você foi a um prostíbulo, o que você ia achar? Isso fazendo um paralelo com a comparação que você fez.

          Não deveria ser de utilidade de governos ou empresas saber o ciclo menstrual das mulheres. Mas para alguns governos o é – pois pode informar sobre questões de planejamento familiar, e isso é de interesse dos governos pois com isso podem planejar a economia. Isso também para algumas culturas é fazer do corpo da mulher algo com proprietário que não seja a mulher. No caso de empresas, isso serve para ou vender dados para os governos ou para interessados como farmacêuticas.

          Por ultimo: sites de tecnologia .br apenas em rss para ver 2 ou 3 noticias locais que prestam por semana. Mas não é completamente culpa deles. Nada relevante ou animador acontece nesse submundo aqui…

          O Ghedin já lhe deu um link com sites e newsletters com bom conteúdo no Brasil. Cabe a ti ver se lhe é relevante.

          Senão, faça como eu. Gaste menos energia “xingando muito” e mais energia fazendo algo que lhe divirta, e que não faça mal a terceiros. Garanto-lhe que será um pouco mais feliz. ;)

  3. Eu consigo entender sites br cobrindo esse caso porque adoramos copiar as bobagens que os americanos fazem, então pra algo similar acontecer aqui é um pulo.

    O que eu achei mais bizarro foi a cobertura br sobre a crise da “baby formula”. Acho que nem temos um equivalente por aqui

    1. Sim, temos. Nan, Aptamil, Ninho Fases entre dezenas de marcas. Basta olhar em qualquer farmácia.

      O tema, entretanto, é relevante para um segmento muito específico: pais que precisam amamentar crianças com menos de um ano. No caso, a alimentação é dificilmente substituível quando a mãe não pode fornecer leite materno suficiente por diversas razões. Tamanha urgência levou o governo americano a importar de maneira emergencial, trazendo de avião lotes de fórmula infantil da Europa. A indisponibilidade de nutrientes nesta idade pode causar sequelas irreversíveis e até a morte.

  4. Caraca Ghedin, dessa vez você se superou, conseguiu juntar tudo que venho matutando esses dias sem formar algo coeso na mente em um ensaio sensacional.

    A crítica aos sites brasileiros de tecnologia não poderia ser mais afiada, realmente parecem traduções de The Verge e companhia sem as sensibilidades
    brasileiras que tornam o Manual tão especial!

    Parabéns e continue o ótimo trabalho!!