A guerra dos chips

No final de agosto, a Huawei apresentou um novo celular para o mercado chinês, o Mate 60 Pro.

Seria só mais um típico topo de linha chinês para o mercado interno, com números enormes e uma versão do Android sem coisas do Google, não fosse por um detalhe: o Mate 60 Pro tem conectividade 5G.

Graças às sanções comerciais impostas pelos Estados Unidos à China desde 2019, que impedem que empresas do próprio país e de aliados vendam tecnologia de semi-condutores a alguns players do gigante asiático, negócios inteiros pararam no tempo.

Em 2019, a Huawei era a segunda maior fabricante de celulares do mundo, em rota para tomar a liderança da sul-coreana Samsung. Quatro anos depois, impedida de usar chips modernos e de acessar o Android do Google, não aparece sequer na lista das maiores.

Em A guerra dos chips: A batalha pela tecnologia que move o mundo1, publicado no Brasil pela Globo Livros, Chris Miller conta a história do chip de computador com grande enfoque na geopolítica.

Desde muito cedo, os semi-condutores foram instrumentais para a supremacia bélica norte-americana no pós-II Guerra Mundial. A vantagem numérica da União Soviética não foi páreo para a precisão e a inteligência proporcionadas por computadores (e chips) cada vez mais rápidos.

A indústria nascente também serviu para a diplomacia capitalista dos EUA. A oferta de mão de obra barata e a necessidade de presença na Ásia levaram empresas e o governo norte-americanos a criar vínculos comerciais com Japão, Coreia do Sul, Taiwan e Cingapura.

Em grande medida, foram investidas bem sucedidas. Até demais. Nos anos 1980, a produtividade japonesa gerou uma avalanche de chips de memória baratos e de alta qualidade que quebrou muitas fabricantes norte-americanas e viabilizou o surgimento da Sony e de produtos até então impossíveis, como o Walkman.

A TSMC, hoje a maior fundição de chips do planeta, é sediada em Taiwan, centro das tensões entre China e EUA. A TSMC tem em sua lista de clientes praticamente todas as empresas que dependem de chips de ponta — incluindo a Apple.

O passeio proposto por Miller é rico em detalhes e generoso com o papel de outros países e pioneiros que não norte-americanos.

Sem surpresa, as últimas duas partes (de oito) do livro são dedicadas à China, que tenta seguir a mesma cartilha usada pelos EUA na segunda metade do século XX, de confiar no domínio da arte de transformar wafers de silício em minúsculos componentes, com bilhões de transistores, para influenciar outros países e conseguir a dianteira armarmentista.

Miller soa reticente com as chances de sucesso de Pequim, a despeito das toneladas de dinheiro e recursos que o governo de Xi Jinping despeja no setor.

A opinião, porém, não é unânime. Jensen Huang, o taiwanês fundador e CEO da Nvidia, a empresa de semi-condutores mais quente do momento, acredita que as sanções norte-americanas forçarão a China a se virar, a desenvolver a tecnologia de que precisa e está sendo impedida de acessar. O Mate 60 Pro, da Huawei, é um forte sinal de progresso nesse sentido.

Em 1972, Bob Noyce, um dos fundadores da Intel, interrompeu a festa de bodas de ouro de seus pais para dizer, empunhando um wafer de silício, que aquilo iria “mudar o mundo”. Meio século depois, o brado de Noyce continua valendo.

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  1. A editora gentilmente forneceu uma cópia digital do livro para eu ler. Fica meu agradecimento à Globo Livros!

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4 comentários

  1. “A opinião, porém, não é unânime. Jensen Huang, o taiwanês fundador e CEO da Nvidia, a empresa de semi-condutores mais quente do momento, acredita que as sanções norte-americanas forçarão a China a se virar, a desenvolver a tecnologia de que precisa e está sendo impedida de acessar.”

    Porras, isso eu disse quando começou essa política estadunidense. Troca aí, Ghedin!

    E digo mais, os chineses vão correr tanto atrás, aperfeiçoar tanto o que já tem, que daqui a pouco eles assumem a liderança de vez.

    1. Diego, isso foi dito há bastante tempo por Kai-Fu Lee, autor do livro Inteligência Artificial. Eu trabalho no mestrado com IA. Basta um rápido levantamento para notar qual é o pais que tem mais publicações na área de computação ao longo da última década: China. O que falta para serem reconhecidos como nova liderança mundial? Aceitação da realidade. Aliás, Taiwan é China.

    2. Hehehe, muita gente cantou essa bola.

      No livro, Miller é cético porque o investimento no desenvolvimento de chips é caro (mesmo para a China/grandes potências), o ciclo é muito rápido (a cada dois anos muda quase tudo) e exige muita expertise (hoje só a ASML, da Holanda, fabrica sistemas de litografia EUV usados para a produção de chips de ponta). E ainda tem a disputa por cérebros, que mesmo com a cisão comercial entre China e Ocidente, ainda é bastante acirrada.

      Em outras palavras, não é apenas uma questão de grana, de investimento. A bagagem conta muito.

      Outro reflexo dessa complexidade é o papel hegemônico que a TSMC conquistou. Nem Intel, nem Global Foundries, nem ninguém conseguiu acompanhar o ritmo imposto pelos taiwaneses.