Quando a Apple revelou o oxímetro presente no Apple Watch Série 6, em setembro de 2020, o fez de maneira elegante (ou precavida), sem mencionar em momento algum a pandemia de Covid-19. Um dos sintomas mais graves da doença é o comprometimento dos pulmões. A evolução do quadro é feita com o auxílio do oxímetro, um pequeno dispositivo preso ao dedo do paciente capaz de detectar o nível de oxigenação no sangue.
Faltou elegância, tato e sensibilidade no último comercial do Apple Watch Série 7, publicado no último sábado (1º). Na peça de um minuto, ouvimos (em inglês) três ligações a serviços de emergência feitas pelo Apple Watch por três usuários do relógio que se viram em situações de vida ou morte: uma que capotou o carro e está prestes a se afogar; um que estava surfando e foi levado pelo vento oceano adentro; e um que caiu e fraturou a perna, sozinho em uma fazenda.
Nenhum ser humano aparece no comercial. Em vez disso, vemos apenas paisagens vastas, etéreas — uma estrada no entardecer, o oceano e um descampado —, que intensificam o isolamento e a sensação de desespero inerente aos diálogos.
Ao final, a Apple diz: “Com a ajuda dos seus Apple Watches, Jason, Jim e Amanda foram resgatados em minutos.”
A mensagem, explícita, é que você pode literalmente morrer sozinho se não tiver um Apple Watch no braço, um produto de luxo, vale lembrar, que no Brasil custa no mínimo R$ 2,6 mil (na versão mais defasada à venda, a Série 3; ou R$ 5,7 mil na Série 7, a mais atual).
É um tipo de marketing macabro, de extremo mau gosto e, o que é pior, enganoso: o recurso milagroso que salvou as três pessoas foi a boa e velha ligação telefônica, coisa que qualquer celular, até aqueles de R$ 100, fazem.
O Apple Watch encontrou sua vocação como dispositivo de saúde, com muitas histórias de consumidores que detectaram problemas cardíacos com a ajuda do relógio. Geração após geração, a Apple inclui mais sensores e cria novos recursos de saúde e bem-estar, e não faz muito tempo passou a posicionar o Apple Watch como monitor para estudos científicos e uso em hospitais.
Não surpreende que, mais uma vez, a indústria proponha a solução de um problema coletivo — a saúde pública, no caso — no campo individual, de modo excludente e lucrativo. Se você não tem dinheiro para um relógio da Apple ou não se interessa por ele, azar. Morra aí sozinho.
As pessoas salvas pelo relógio inteligente, em número reduzido a ponto de poderem ser catalogadas e festejadas em coberturas individualizadas pela imprensa, talvez pudessem descobrir esses mesmos problemas pela via tradicional, com exames regulares, fossem esses mais difundidos e, no caso dos Estados Unidos, mais acessíveis.
E nem entramos na paranoia que o Apple Watch gera. Em um estudo publicado em setembro de 2020, apenas 10% das pessoas que procuraram atendimento médico após serem alertadas pelo relógio da Apple de que havia algo errado com seus corações acabaram descobrindo que de fato tinham um problema cardíaco.