Muito em breve a divisão de celulares da Nokia será incorporada à Microsoft, encerrando uma história de décadas. As atividades da Nokia, porém, vão muito mais longe do que décadas. A empresa orgulho dos finlandeses está prestes a completar 150 anos e embora os celulares com a sua marca estejam com os dias contados, alguns herdeiros já se movimentam para dar continuidade a esse legado.
O fim da Nokia fabricante de celulares foi conturbado. Muitos atribuem esse desfecho, o início do fim, à chegada de Stephen Elop, ex-Microsoft, ao cargo de CEO da Nokia, o primeiro da história não nascido na Finlândia. Em 2011, um memorando comparando a empresa a uma plataforma de petróleo em chamas marcou o começo de uma série de reformulações que acabou com os sistemas operacionais da casa — primeiro o Symbian, depois o MeeGo — e culminou na adoção irrestrita do Windows Phone, da Microsoft, nos smartphones topo de linha.
Foi uma guinada que ainda não se justificou. Algo precisava ser feito, sim, e dentro das possibilidades ter adotado um sistema novo e sem players fortes pode ter sido uma boa. Mas poderia ter sido diferente? A Nokia conseguiria se reinventar apostando no MeeGo? Usando Android? A essa altura, só podemos imaginar esses cenários paralelos.
O abraço na Microsoft desagradou um punhado de gente, dentro e fora da Nokia. Vários funcionários foram demitidos, alguns se demitiram. Uns poucos se juntaram para dar continuidade às ideias da era pré-Elop. Dessa desbamdada surgiram três empresas que esperam conseguir, em um mercado hostil com novatos, despontar como alternativas não só à própria Nokia, mas às outras empresas estabelecidas, como Apple e Samsung. Elas querem ser a Nokia que todo finlandês, que todo mundo que usou e curtiu um N9, gostaria de ter visto.
Jolla: o sucessor espiritual da velha Nokia
Nessa semana a Jolla, primeira das empresas criadas por ex-funcionários da Nokia, no final de 2011, começou a distribuir seu primeiro smartphone para os finlandeses que fizeram a pré-compra. O aparelho roda o Sailfish OS, uma espécie de sucessor espiritual do MeeGo, com interface totalmente baseada em gestos e compatibilidade com apps do Android.
O Jolla não tem especificações que saltam à vista. Vem com um Snapdragon 400 (processador Krait 200 dual core rodando a 1,4 GHz, mais GPU Adreno 305), 1 GB de RAM, 16 GB de espaço interno, tela de 4,5 polegadas com resolução qHD (960×540 pixels) e câmeras frontal e traseira, com 2 e 8 mega pixels, respectivamente. No universo Android, seria no máximo um mid-range, algo para bater de frente com o Moto G, da Motorola.
Especificações não contam toda a história. A centralização da produção de hardware e software é um diferencial e, na prática, pode ser que tais números se traduzam em uma experiência suave, livre de engasgos ou lentidão. Pesa contra o status “beta” do Sailfish OS, e por € 399, algo em torno de R$ 1.260, o Jolla não é exatamente barato. Mas vamos dar um desconto: o MeeGo era um sistema bem acertado e vê-lo voltar à ativa com melhorias é, no mínimo, empolgante.

Empolgante, mas passível de dúvidas. O Jolla não tem botões físicos, toda a interação se dá por gestos. Embora eles não sejam coisa de outro mundo, são vários — vide as imagens abaixo. Existe uma curva de aprendizado em um dispositivo que as pessoas tomam como certo o manuseio — ou alguém aí lê o manual do celular antes de começar a usá-lo? Ser diferente é legal, mas é também um entrave para consumidores menos conscientes do que é a Jolla e o que ela representa.
Quebrada essa barreira inicial, imagino que o usuário se sinta em casa com o sistema de gestos e a bela interface do Sailfish OS. Claro, só testes empíricos podem dar essa exata noção, mas os vídeos demonstrativos apresentam um sistema rápido e esperto, com uma multitarefa que se confunde com widgets e um padrão visual de muito bom gosto. No papel, é um sistema correto, coeso.
Se o Sailfish OS inspira um misto de empolgação e desconfiança, a ideia das capinhas multifuncionais é genial por consenso. A Jolla chama o conceito de “A Outra Metade”. Essas capas podem incorporar funções físicas ao smartphone graças ao padrão I²C, da NXP:
Não se sabe muito bem até onde a flexibilidade d’A Outra Metade vai, mas ideias malucas não faltam, algumas delas renderizadas pelo designer Caprico nesta imagem:

Um teclado físico, uma câmera melhor, mais bateria, NFC… A simplicidade do padrão I²C faz com que o smartphone incorpore a “metade” anexada automaticamente, de forma quase orgânica. Quando uma é acoplada, o Sailfish a identifica sozinho, muda a interface e se adapta para fazer uso da função que a capa em questão traz. É uma versão simplista do conceito Phoneblok, mas o importante é que é uma funcional.
Não há expectativa de quando o Jolla cruzará as fronteiras finlandesas e chegará a outros países. Quem financiou a campanha de crowdfunding da empresa receberá um por agora. A venda direta no varejo ou via operadoras, por ora é algo incerto — mas apostar na China, onde a empresa tem escritórios e um centro de P&D, é uma boa.
Adaia: smartphones duros na queda para aventureiros

Se o Jolla se esforça para dar continuidade ao software característico da velha Nokia, a Adaia, fundada em maio também por ex-funcionários da empresa e liderada por Heikki Sarajarvi, busca manter viva a alardeada durabilidade dos seus celulares, ainda que por um motivo bem mundano: Sarajarvi destruiu três smartphones em uma viagem de barco de três meses em 2011. “Não posso ser o único que destrói esses smartphones fazendo coisas absolutamente normais”, disse para si mesmo.
A Adaia quer ser sinônimo de smartphones aventureiros. No pouco que já divulgou, não se interessou muito em falar sobre especificações e software, mas em ressaltar como seus aparelhos serão duráveis. Além de “casca grossa”, eles terão conectividade via antenas e satélite, para manter o usuário conectado mesmo nos lugares mais remotos do planeta.
Espera-se que o primeiro modelo, por ora um protótipo chamado Blackcomb, seja lançado em algum ponto de 2014. A Adaia, que conta com 16 funcionários, firmou parcerias para torná-lo realidade: para o design, que lembra uma planta topográfica (imagem acima), fechou com o DesignworksUSA, grupo pertencente à BMW; para os componentes internos, com a Elektrobit.
O Blackcomb não será barato, como todo equipamento feito para resistir a condições adversas, e deverá ser um produto de nicho. Talvez você nunca mais ouça falar da Adaia, e está tudo bem — nem todo mundo tem uma veia aventureira tão pulsante.
Newkia = Nokia + Android
“O acordo reflete a falha completa da estratégia com Windows que Stephen Elop escolheu quando foi indicado a CEO da Nokia dois anos atrás. (…) A Nokia, que há apenas três anos era líder mundial de telefones móveis, é hoje uma marca pequena e insignificante.”
Com essas palavras em mente, Thomas Zilliacus, que tem no currículo 15 anos de trabalhos prestados à Nokia e mais três como consultor, fundou a Newkia em Cingapura no mesmo dia em que foi anunciada a venda da Nokia à Microsoft por US$ 7,2 bilhões. Acusando a Nokia de arrogância e estagnação, Zilliacus quer, com a Newkia, fazerdo jeito que ele acha certo: casar o hardware de ponta da Nokia com o sistema mais popular do mundo, o Android.
Essa dobradinha, o sonho de muita gente, ainda tem uma longa jornada até se concretizar em um aparelho comercial, embora, nas palavras do fundador, esteja “andando rapidamente rumo à distribuição [do primeiro aparelho]”. Nessa semana a Newkia ganhou um CEO, Urpo Karjalainen. Em seu currículo, 20 anos de Nokia e o cargo de chefe de operações de negócio de alguns mercados emergentes da BlackBerry até março deste ano.
Apoio à Newkia parece não faltar. Zilliacus recebeu mais de 50 emails de funcionários da Nokia quando anunciou sua nova empreitada, vários com currículos anexados pedindo uma vaga em sua empresa.
Sabe aqueles universos paralelos que a gente imagina vez ou outra? Algo como iPhone rodando Android, ou notebooks da HP/Dell com o OS X? A Newkia tornará um deles realidade. Se um Nokia com Android será sucesso ou não, não dá para prever, mas curioso pelo menos isso será.
O que sobrou para a Nokia?

A divisão de dispositivos da Nokia vendida à Microsoft era parte da empresa. A mais popular junto às pessoas comuns, mas apenas parte. Com a sua venda, o que sobrou da Nokia foi dividido em três áreas:
- Equipamentos de rede (Nokia Solutions and Networks).
- Serviços de geolocalização (HERE Maps).
- e “Tecnologias Avançadas”.
Em julho desse ano a Nokia comprou a parte da Siemens no acordo que tinha com a empresa desde 2006 na primeira dessas três áreas. Essa divisão, lucrativa, torna a Nokia a quarta maior empresa fornecedora de equipamentos de telecomunicações do mundo, atrás de Ericsson, Huawei e Alcatel-Lucent.
Os serviços de geolocalização, consolidados sob a marca HERE, são outra força — embora longe de ser tão rentável quanto a NSN. A Nokia entrou pra valer nesse mercado em 2007, quando comprou a Navteq. Hoje, além de servir seus próprios aparelhos, ela licencia a tecnologia para outras fabricantes, de smartphones (Jolla e Windows Phone usam mapas HERE) a carros.
Por fim, em “Tecnologias Avançadas” ficam abrigadas as propriedades intelectuais da Nokia, incluindo as mais de 10 mil patentes que a empresa possui.
A nova Nokia não é tão empolgante quanto a que nos deu o N95, N9, Lumia 800 e o lendário 1100, o celular mais vendido do mundo. É uma empresa enxuta, que foca em fazer menos coisas, e só as mais lucrativas ou com potencial para fazer dinheiro. É meio triste se pensarmos no legado que fica pelo caminho, engolido pela Microsoft, mas é bom saber que ex-funcionários darão continuidade a ele, com novas empresas, sistemas e propostas.